Música: Wilson Lopes. Letra: Vilma Cançado. Vozes: Vilma Cançado, Mariana Cançado, Gabriela Cançado e Gilma Oliveira. Piano e violões: Wilson Lopes. Arara: Arquivo pessoal. Produção musical e arranjo: Wilson Lopes.
Gravado, mixado e masterizado no Estúdio WL, por Wilson Lopes.
Desde o começo da pandemia, uma pergunta tem pautado a cabeça dos amantes da folia: vai ter carnaval em 2021? Num primeiro momento, quando tudo parecia que ia durar poucos meses e que logo voltaríamos ao normal após um período de intenso isolamento social, havia uma expectativa de que tudo se resolveria. Mas, atualmente, diante de um isolamento social que foi apenas parcial e da volta ao trabalho de diversos setores econômicos, o que esperar de 2021?
Primeiramente, gostaria de abordar um tema que tem pairado no ar: o carnaval de 1919. Por ter acontecido logo após a pandemia de gripe espanhola de 1918, ele é sempre evocado para falar de como aquela pandemia foi superada. Desde que o coronavírus chegou com força ao Brasil, Folha de S. Paulo e O Globo fizeram reportagens sobre o tema e esse carnaval é sempre lembrado nas conversas dos foliões nos mais diversos lugares.
Nos relatos que existem, o carnaval de 1919 é sempre lembrado como um carnaval estupendo, marcado pelo primeiro desfile do Cordão da Bola Preta, pelo surgimento do Bloco do Eu Sozinho (não, não é o álbum do Los Hermanos) e dos primeiros blocos só de mulheres no comando.
Um dos relatos mais sistematizados desse carnaval é o livro “Metrópole à Beira-Mar: O Rio Moderno dos Anos 20”, de Ruy Castro. O início do livro é todo dedicado ao carnaval de 1919, que de certa forma já inaugurou a década que estava por vir.
Naquela ocasião, tivemos cerca de 600.000 pessoas (ou 50% da população) infectadas no Rio de Janeiro. Desses, em torno de 15.000 morreram, de setembro a novembro de 1918. A cidade passou por cenas terríveis, como a ausência de madeira para caixões, corpos sendo deixados pelas famílias como se deixa o lixo na rua e a falta de espaço em cemitérios.
O carnaval de 1919 veio então em clima de revanche e desforra. Mas ele não deve ser romantizado, visto que muitos foram participar da festa nas ruas achando que essa seria a última de suas vidas.
Voltando aos dias atuais…
É preciso reconhecer que o carnaval de 2021 já foi comprometido. Isso porque o carnaval, tanto de rua quanto da Sapucaí, é um algo que não existe só naqueles 4 dias que antecedem a quaresma.
No caso das escolas de samba, os meses de março e abril são normalmente usados para férias de alguns profissionais e para desmonte da estrutura do carnaval que passou. Além disso, são feitas as negociações das equipes que farão parte do carnaval seguinte, junto com o anúncio de enredos.
Entre essas tarefas, a que segue pendente é a escolha dos enredos. Temos, aqui, uma divisão entre as escolas de samba cariocas. Havia escolas que já tinham divulgado enredo, como V. Isabel e Mocidade; temos as que optaram por divulgar mesmo após o início das quarentenas, como Viradouro, Beija-Flor, Grande Rio, Unidos de Padre Miguel e Império da Tijuca; e ainda as que têm segurado a divulgação, como Império Serrano, Mangueira, São Clemente e Portela. Em alguns casos, a divulgação do enredo teve a ver com datas específicas ou com o tema (são os casos de Grande Rio e Viradouro).
Não há ainda definição formal da LIESA e LIERJ (ligas que organizam o desfile do Grupo Especial e Série A) sobre o que fazer com o carnaval do próximo ano. Em participação no programa Bar Apoteose, Gabriel David, da Beija-Flor, afirmou que os barracões, especialmente do Grupo Especial, não teriam problema em funcionar desde já, pois seriam lugares arejados e onde não há aglomeração de pessoas. Ainda segundo ele, as escolhas de samba-enredo e o sorteio da ordem dos desfiles (eventos que ocorrem normalmente de agosto a outubro) poderiam ser feitos virtualmente através de lives e que o maior impeditivo para o desfile de 2021 acontecer no carnaval seriam os ensaios, que tem que começar em novembro e dependem de aglomeração.
Enquanto aguardamos uma plenária da LIESA sobre o tema, vale a pena fazer considerações sobre a “mensagem otimista” propagada pelo dirigente da Beija-Flor. A primeira delas é que uma parte importante da confecção das escolas não é feita nos barracões e sim na casa de costureiras ou ainda em barracões menores, espalhados pela cidade. Isso também vale para as escolas que não são do Grupo Especial e que tem barracões bastante precários. Além disso, há outros setores que já ensaiam desde já, como a bateria. Outra questão é que esperar até novembro para tomar uma decisão seria no mínimo temerário.
Entendo que as escolas de samba deveriam desde já tomar uma decisão sobre 2021: ao invés do desfile, organizar um “festival de escolas de samba”, com apresentação de bateria, intérpretes e demais segmentos das escolas, ao som de sambas clássicos de cada agremiação. Esse festival seria realizado em algum feriado ou fim de semana de maio ou abril. E os enredos até agora escolhidos? Ficam para 2022.
Além do vírus, temos ainda um obstáculo econômico, visto que nos últimos anos os lugares da Sapucaí têm sido ocupados basicamente por turistas nacionais e estrangeiros. Diante do cenário em que o Brasil cada vez mais está virando um pária internacional, a quem seriam vendidos os ingressos?
Outra situação é a do carnaval de rua. Ainda que com uma estrutura mais fluida que as escolas, muitos blocos tem também atividades durante o ano todo, sobrevivendo financeiramente realizando oficinas (de instrumentos, de pernaltas e outras) e shows.
Com o cancelamento desse tipo de evento, muitos blocos estão se reorganizando e se adaptando ao novo cenário promovendo, por exemplo, aulas virtuais. As dificuldades se ampliam quando pensamos que a Cultura já era um setor que vinha sofrendo com a falta de financiamento público pelo menos desde 2016.
Para o desfile em si, a organização dos blocos requer bem menos tempos que das escolas de samba. O Cordão do Boitatá, por exemplo, um dos blocos com mais estrutura do carnaval carioca, conquistada a partir do autofinanciamento, começa normalmente seus ensaios e sua campanha financeira em janeiro.
Considerando essas questões acima, acredito que haverá carnaval de rua em fevereiro de 2021, seja ele através dos blocos mais organizados e tradicionais ou através de muita gente saindo na rua para extravasar.
Contextos para além da organização dos blocos e escolas
Vale lembrar que estamos diante de um contexto que ainda há uma expansão da COVID-19, eleições municipais, crise no governo estadual diante de um provável impeachment, crise política em nível nacional e uma dificuldade objetiva em realizar isolamento social, devido à aglomeração das favelas e comunidades e ao pouco auxílio financeiro por parte dos governos para as famílias que dependiam de empregos informais e/ou temporários.
Com a reabertura do comércio, dos shoppings e com a volta até do campeonato estadual de futebol, parece que contamos apenas com a sorte para não termos uma tragédia. Como o coronavírus parece não dar bola para isso, é preciso analisar também alguns cenários da expansão da epidemia.
Segundo a pesquisa Ibope/UFPel, cerca de 7% da população da cidade do Rio de Janeiro já teve contato com o vírus e adquiriu imunidade (que se especula que pode durar por 18 meses). Isso aconteceu em 3 meses de expansão do vírus durante um isolamento social de aproximadamente 50% da cidade. Para se chegar num contingente grande de pessoas já imunizadas a ponto de impedir a circulação do vírus, estimado em 70%, seria necessário multiplicar por 10 o que tivemos até agora. Isso nos levaria a um cenário de mais de 50.000 mortes, apenas na capital do estado. Proporcionalmente, é menos que os 2,5% que faleceram em 1918 (e isso provavelmente se deve ao isolamento meia-boca feito de março a junho e a estrutura de saúde pública que ainda resta por aqui).
Se a “sorte” for a “política pública” vencedora, estaremos diante de um cenário de tristeza e desesperança ainda maior que o atual. Neste cenário, certamente haverá um momento de catarse coletiva, provavelmente na data do carnaval. Diante do desmantelamento das políticas de saúde e da capitulação das autoridades públicas ao negacionismo de Bolsonaro e sua trupe, eu arrisco dizer que, infelizmente, haverá carnaval em fevereiro de 2021. Só não dá pra dizer se eu e você estaremos vivos para presenciar e participar desse momento.
* Bernardo é sociólogo e leva a sério a brincadeira do carnaval. Seus textos são encontrados também no @carnavalicia
Publicação disponibilizada em formato Epub e PDF reúne debates que contribuem para reflexões sobre a pandemia da COVID-19
Demonstrando que a pandemia da COVID-19 tem diferentes impactos sociais e regionais, o livroorganizado pelas pesquisadoras Ana Lole e Inez Stampa e pelo pesquisador Rodrigo Lima Rodrigues, evidencia as marcas da violência colonial e de gênero, do genocídio étnico-racial, das sexualidades dissidentes, dos corpos invisibilizados e das vidas “sem importância” que compõem as sociedades contemporâneas.
Reunindo 27 artigos de 39 autores, demonstra que os impactos epidêmicos, ao longo do tempo, sempre estiveram dependentes das profundas segmentações e relações, historicamente estruturadas, de exploração-dominação de grupos populacionais.
A crise e a pandemia se retroalimentam, já que as condições de vida cada vez mais precarizadas para a imensa maioria da população aumentam as chances de contágio e de agravamento da doença. A pandemia, por sua vez, exige distanciamento e isolamento social como medida indispensável para a prevenção do contágio, impactando negativamente uma economia já combalida.
No Brasil, temos uma segunda dificuldade em relação à realização de qualquer previsão acerca dos impactos sociais e econômicos da pandemia: a agenda reacionária e a irresponsabilidade política do presidente Bolsonaro, que gera crises consecutivas, ameaças golpistas e um desdém e uma inépcia inacreditáveis em relação ao combate ao novo coronavírus, sua difusão descontrolada pelo território nacional e um descaso pelos mortos.
A atitude negacionista em relação à ciência, a pressão de empresários e as ações na contramão do razoável por parte do governo federal estão conduzindo o Brasil a condições trágicas, tanto sanitárias quanto econômicas. Por muitos ângulos distintos, as autoras e os autores deste livro procuram interpretar os movimentos combinados dessas duas crises, com o intuito de contribuir para ações políticas que nos permitam sair da pandemia em condições decentes de civilidade.
Esperamos que os debates reunidos nesta coletânea contribuam para reflexões sobre a grave crise que assola o mundo, em particular sobre a pandemia, mas, também, possam dar pistas para pensarmos sobre os rumos políticos do Brasil. Uma “nova direção intelectual e moral” é necessária.
Há exatos 20 anos, aos 58 anos, falecia João Nogueira, devido a um infarte fulminante. Cantor e compositor, autor de grandes sucessos da música brasileira como “Espelho”, “As forças da natureza”, “Minha missão” e “Poder da criação”, João morreu na madrugada de 5 de junho de 2000.
Nascido no Méier, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em 1941, João teve contato logo cedo com a música, a partir de seu pai João Batista Nogueira e de sua irmã, Gisa Nogueira. Aos 15 anos, já compunha músicas para o bloco Labareda, que agitava as ruas do bairro. Sua carreira profissional começou a deslanchar quando Elizeth Cardoso gravou “Corrente de aço” em 1969.
Na década de 1970 encontrou seu principal parceiro, Paulo César Pinheiro. Com ele, compôs alguns de seus maiores sucessos. Nessa década e na seguinte João também consolidou sua carreira como cantor, gravando 15 álbuns entre 1972 e 1988. Entre esses, destacam-se “Espelho”, “Boca do povo” e “Wilson, Geraldo, Noel”.
Seu modo de cantar seguiu a linha de outros mestres do samba, como Ciro Monteiro. Com uma forma própria de frasear as músicas, João era craque em cantar sambas sincopados.
Além da sua contribuição como cantor e compositor, João também foi um combatente a favor da cultura popular e das causas democráticas. Em 1979, fundou o Clube do Samba, um espaço de valorização do gênero, que naquele momento era deixado de lado em troca da música pop/dance. O Clube começou a funcionar em sua casa e depois foi se expandindo. Posteriormente, virou um bloco de carnaval, que até hoje faz seus desfiles.
A partir daí, conectado com as lutas democráticas que sacudiam o país, João lançou uma série de músicas que abordavam estes temas, como “Vovô Sobral”, “Canto do trabalhador” e “Chorando pela natureza”.
Além da sua participação no Labareda e na transformação do Clube do Samba em bloco de carnaval, João também teve intensa relação com as escolas de samba. Em 1972 foi admitido na Ala de Compositores da Portela (para tal, apresentou o samba “Sonho de bamba”), escola onde ficou até 1984, quando fez parte do grupo que saiu da escola para criar a Tradição.
Nos primeiros anos da nova escola, João foi fundamental. Ele é um dos autores dos 5 primeiros sambas-enredo da escola, momento que a agremiação subiu da quarta até a primeira divisão, numa ascensão impressionante. O primeiro samba-enredo, “Xingu”, de 1985, se insere no contexto das lutas democráticas daqueles anos.
Além da sua participação na Portela e na Tradição, João também desfilou em outras escolas, como a Mangueira, quando esta homenageou o amigo Chico Buarque, em 1998.
Na década de 1990 João seguiu gravando álbuns e compondo, ainda que já com alguns problemas mais sérios de saúde e num momento que as gravadoras andavam desprezando o samba – mais do que em outros momentos. São desse período os excelentes “Parceria – João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro” e “Chico Buarque, letra & música”.
Ao falecer, João deixou um grande legado, nos seus álbuns e nas suas ações concretas. Segue vivo, pois é sempre lembrado nas rodas de samba e nos carnavais.
* Bernardo é sociólogo e adora samba. Seus textos são encontrados também no @carnavalicia
Indo para a II Guerra Mundial, um soldado brasileiro levou sua cuíca. Nesses tempos de pandemia mundial e de luta contra o avanço de ideias fascistas no Brasil (e no mundo), essa foto tem ainda mais significado.
Não é à toa que essa imagem ilustra a capa do livro “Latin America During Word War II”. Ela transborda esperança em dias melhores. Mesmo indo para uma guerra de proporções mundiais, a importância de levar seu instrumento, pois alguma hora haveria de ser possível tocá-lo, para um momento de respiro dele e de seus colegas.
Uma imagem que fala também sobre a importância do samba para a vida deste soldado. E não é que a atual pandemia tem nos explicitado tanto a importância da arte e cultura para nossas vidas. De certa forma, as apresentações que muitas artistas fazem de suas casas, as festas virtuais e outras iniciativas com este sentido são a nossa cuíca em tempos de guerra.
A foto também traz a tona a participação de sambistas como soldados brasileiros na II Guerra. Esse tema ilustra alguns sambas, como uma trilogia de Wilson Batista (disponível na voz de Chico e Cristina Buarque AQUI).
Os sambas Lá Vem Mangueira, Cabo Laurindo e Comício em Mangueira contam a história de um diretor da Mangueira (o Laurindo) que foi para o front e, na volta ao Brasil, coberto de glória, é saudado pelas demais escolas de samba e realiza um comício no morro. Laurindo é retratado como amigo da verdade e defensor da igualdade e sua chegada é um indício de que no morro vai haver transformação.
Os 3 sambas tem um tom épico e a força da melodia vai subindo conforme a história vai sendo contada. No final da trilogia, é quase automático ficar de pé, emocionado, cantando em voz alta.
Ainda que Laurindo fosse um personagem imaginário de sambas da primeira metade do século XX (uma pesquisa de Rodrigo Alzuguir, que gerou uma peça de teatro com esse nome, encontrou 13 sambas com esse personagem), é possível dizer que esse Laurindo da trilogia de Wilson Batista tenha existido.
Isso porque a foto de nosso soldado com sua cuíca evidencia algo que já apareceu em outras pesquisas e nas notícias da época: muitos dos pracinhas brasileiros eram oriundos das classes populares. Poderiam, portanto, serem moradores de morros do Rio de Janeiro. E, sendo moradores de morros e favelas, porque não seriam de uma escola de samba?
Além disso, é válido lembrar a participação de vários militantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro), defensores da igualdade, entre a Força Expedicionária Brasileira. Junto a isso, temos a importância da URSS na derrota do nazi-fascismo e uma já forte presença do PCB no mundo do samba carioca (os relatos indicam a participação de Paulo da Portela e do próprio Wilson Batista em reuniões com forte influência do PCB). Portanto, não seria difícil que um sambista carioca no pós II Guerra fosse militante comunista e organizasse comícios no morro.
Desta forma, dá pra dizer que foram muitos os Cabos Laurindos que estiveram na Europa ajudando na derrota do nazi-fascismo, naquilo que se configurou certamente como uma das maiores vitórias da classe trabalhadora mundial no Século XX.
Esse soldado da foto, que acreditou na arte e na cultura num dos momentos mais difíceis da história mundial, pode ser uma inspiração para o momento que vivemos. É também com arte e cultura que derrotaremos a pandemia e o fascismo atual e que comemoraremos essa vitória.
[ agradeço a Mariana Vantine e Julia Ventura pelo incentivo para o texto saísse e a Rodrigo Alzuguir pelo envio da foto ]
O que esperar da troca de correspondência de dois amigos de longa data? Muita ternura e tudo que possa ganhar status de vizinhança. Mas, se esses amigos além de tudo são dois ótimos escritores, você também é brindado e contemplado com ótima literatura (Kerouac/Ginsberg, Jorge Amado/ Saramago, Armando Freitas Filho/Ana C), confissão de boteco onde cada um tem seu tempo para falar o que lhe vier à cabeça e contar o que lhe interessa no momento, sem a presença às vezes restritiva de um interlocutor in loco. O tijucano Eduardo Goldenberg fica sabendo que vai ter um filho, o seu primeiro filho, que vai se chamar Leonel em oportuna e entusiasmada homenagem ao ídolo Leonel Brizola. Uma espécie de renascimento, um sopro de vida nas velhas artérias que faz com que ele escreva maravilhado durante todo o livro, sobrevivendo às custas da boa nova que não lhe sai da cabeça em nenhum momento. Julio vive o extremo oposto, um salto no escuro, sem motivo pra comemorar, bebendo o fel do amargor com duas pedras de gelo de poética melancolia: “não conheço maneira mais honrada de morrer que a atitude de ter um filho”. E, entre lembranças boêmias, cólicas e paternidade, o livro vai deslizando suave como um bom trago de whisky. Apenas dois amigos, seus dissabores e esperanças, suas mulheres e a falta delas — “as mulheres só me suportam bêbado” / “Deus me livre e guarde, Julio! Desconjure! Se você já é tão amargo bebum imagine sóbrio? Eu tô é fora!” —, suas tentativas de suicídio discreto, eventuais turbulências em um voo que parece fadado ao leve farfalhar de nuvens sem maiores consequências. Enquanto Eduardo parece não se conter de alegria e ansiedade contando os dias que antecedem a chegada do filho, Julio enumera seus dias de infortúnio que culminam na tentativa de se empregar como Santa Claus em um boteco onde poderia “xingar os convidados” e acaba por sair de lá chutando renas e duendes assim que descobre que o evento é patrocinado por uma marca de cachaça repudiada por ele. Enquanto Julio lamenta tristemente o suicídio do grande escritor cozinheiro Anthony Bourdain, Edu segue otimista prevendo e planejando o encontro dos amigos no final de ano. Duas vidas correndo paralelas, mas ligadas pela simbiose perfeita da amizade. É um livro para ler sem reservas, para ser devorado com sofreguidão como um dos pratos adorados pelo chef Jota Bê (pseudônimo do escritor Julio Bernardo), como a dobradinha de Talitha Barros (iguaria também venerada por esse que vos escreve). Um livro que persegue dias de sol mesmo nos períodos mais nublados. Por isso não há por que estranhar, perdida entre questões cotidianas, uma declaração que pode soar tão niilista quanto essa de Julio: “os vitoriosos que me perdoem, mas as derrotas são muito mais bonitas e, mais que isso, fundamentais”. É só não esquecer a capa de chuva quando sair pra tomar um Dry Martini e levar o Shoyu pra passear.
Mário Bortolotto Escritor, dramaturgo, ator e compositor
Zambiapungo – o senhor supremo – se entristeceu um dia, cansado da solidão do poder e das tarefas da criação. Cogitava mesmo, o pai maior, interromper o curso do mundo. Faltava alguma coisa que justificasse aquela grandeza toda. Zâmbi, que sabia de tudo, achava que tinha criado todas as coisas necessárias para a vida. Mas estava triste e recorreu aos inquices, voduns e orixás, seus filhos diletos.
Pediu a Zaratempo que inventasse algo para despertar seu interesse e o impedir de desistir do mundo. Tempo criou as estações do ano com todas as suas mudanças. Zâmbi gostou, mas não sorriu.
Zâmbi chamou Katendê e pediu a mesma coisa. Katendê, o senhor das jinsabas (folhas), falou ao pai sobre o poder medicinal das plantas. O deus supremo se interessou um pouco, mas ainda assim não sorriu.
Matamba foi a próxima a tentar alegrar Zâmbi. A senhora das ventanias mostrou a força dos furacões e o baile fabuloso dos relâmpagos. Zâmbi olhou, aplaudiu admirado, mas continuou triste. E assim vieram todos os deuses do Congo. Vunji trouxe as crianças; Angorô inventou o arco-íris; Gongobira deu a Zâmbi um rio de peixes coloridos; Dandalunda chamou as luas que mudam marés; Mutalambô fez um banquete com as caças trazidas das densas florestas; Roxo-Mucumbi forjou ferramentas e adagas no ferro em brasa; Lembá Dilê conduziu um cortejo branco de pombas, cabras e caramujos.
Zâmbi gostou e agradeceu, mas continuou triste.
Até que Zâmbi perguntou se Zaze, o dono do fogo, sabia de alguma coisa que pudesse afastar aquele banzo de melancolia. Zaze, a quem os iorubás chamam de Xangô, consultou o oráculo e imolou um bode branco em sacrifício. As carnes foram repartidas entre as divindades do Congo. Zaze, em seguida, aqueceu a pele do bode na fogueira. Ainda com o fogo, tornou oco o pedaço de um tronco seco da floresta. Sobre uma das extremidades do tronco oco, Zaze esticou a pele do animal e inventou Ingoma – o tambor.
Zaze começou a percutir o couro com toda a força e destreza. Aluvaiá, aquele que os iorubás conheciam como Exu e os fons como Legbá, gingou ao som do tambor de Zaze e, logo depois, todos os deuses do Congo, ao batuque sincopado do Ingoma, fizeram a primeira festa na manhã do mundo.
Zambiapungo gostou do fuzuê do tambor de Zaze e descansou feliz. Era isso que faltava. Zâmbi sorriu.
Um filho de Zaze, muito tempo depois, foi capturado na floresta e jogado no ventre escuro de um navio. Esse negro do Congo chegou, entre correntes de ferro e centenas de outros homens, ao outro lado da calunga grande – na terra onde Zambiapungo era mais conhecido como Tupã.
O filho de Zaze, mesmo entre a dureza das correntes e o cheiro da morte do seu povo, conseguiu levar para o país de Tupã o Ingoma inventado pelo pai.
Ao chegar do outro lado do mar, submetido – e insubmisso – ao horror do cativeiro, o filho de Zaze bateu forte no tambor, convidou para o fuzuê o povo de Tupã e chamou, com a força do ritmo ancestral, os deuses das matas, esquinas e macaias. Eles vieram, atraídos pelo fervor das danças e pelo clamor das festas, e resolveram ficar.
Até mesmo alguns dos que chegaram para dominar a terra foram seduzidos e civilizados pela festa. A generosa festa dos filhos de Zâmbi, nos terreiros grandes do Brasil.
O tambor, filho de Zaze, é o pai do nosso povo.
Luiz Antonio Simas é autor de “Pedrinhas miudinhas”, livro em que este texto foi originalmente publicado.
A Copa acabou, o Brasil não levou, a França ganhou e o jornalista Augusto Martins fala da sua rendição ao árbitro de vídeo, o tal VAR, que embora considere um atentado à narratividade do jogo, parece ser um caminho sem volta para o que o futebol tem se tornado.
Rendição
Esta final da Copa do Mundo marcou o momento em que eu me rendi ao árbitro de vídeo, o chamado VAR. Mais do que isso, acho que começo a me conformar que o futebol não é mais o que era há décadas atrás, e, infelizmente, não vai voltar a ser. E o VAR é mais resultado disso do que causa.
Me explicarei de forma breve, para evitar tornar o meu lamento enfadonho. No ótimo livro “Veneno Remédio: O futebol e o Brasil” (2008), José Miguel Wisnik diz já no capítulo introdutório que o futebol “abre-se, mais do que os demais esportes, a uma margem narrativa que admite o épico, o dramático, o trágico, o lírico, o cômico, o paródico”.
Ele continua: “Nele, o tempo da competição é mais distendido, alargado e contínuo do que no futebol americano, no vôlei, no basquete ou no tênis. (…) Não quero dizer que os outros esportes sejam desinteressantes – muito ao contrário. Mas é que neles, em geral, há um foco mais cerrado sobre cada momento contábil, em que se traduz em números ou em ganho de território o embate frontal de performances e competências. (…), temos uma série de alternâncias de ataques e defesas, de confrontos repicados, individuais”.
Para mim, o VAR é um atentado à “narratividade” do futebol descrita por Wisnick. Se em esportes como futebol americano, rúgbi e tênis é possível encaixar o árbitro de vídeo nas inúmeras pausas previstas, no futebol o VAR é por demais intrusivo e quebra a continuidade do jogo. Como se isso não fosse suficiente, esta Copa mostrou que, com ou sem VAR, as decisões permanecerão subjetivas, passíveis de interpretação e, portanto, polêmicas. Bem… Isso não importa mais. Como disse, eu me rendi. Se nas primeiras rodadas da Copa eu poderia escrever um tratado contra o VAR, isso não vem mais ao caso agora.
No intervalo da final da Copa deste domingo, me veio o lampejo. No primeiro tempo, eu vi a França sem jogar nada marcar um gol de bola parada. Depois, a Croácia, que jogava melhor, mas não criava chances, empatou também na bola parada. No fim da primeira etapa, o juizão se atrapalhou com o VAR e deu um pênalti mandrake para a França, após um escanteio. Pois, bem. Num futebol em que os lances de bola parada são cada vez mais importantes (leio nos sites que esta foi a Copa com mais gols de bola parada) e em que trancar os espaços do campo tem mais valor do que a posse de bola, o árbitro de vídeo não é tão anômalo assim. No futebol do jogo picado, o ritual do juiz correndo para o monitor ao lado do campo enquanto o estádio todo espera o que está por vir não é tão patético assim.
Lembro do livro de Wisnik e não posso evitar de pensar se o futebol não está ficando mais fásico. Não, obviamente, como o vôlei ou o basquete, não que tenha perdido por completo a tal narratividade, mas se não está ficando mais previsível, se não está assim se transformando para pior. Pode ser o nostalgismo típico da velhice me atacando já na meia-idade, mas na próxima Copa eu acho que vou de Netflix.
Está acabando a primeira fase da Copa 2018 e já estamos com saudade. Antes de começar o mata-mata um texto que dá a dimensão da paixão pelo futebol e das emoções que vêm por aí.
O jornalista e escritor Fábio Fabato conta sobre seu namoro com a Itália e o amor pela seleção Canarinho. E nos lembra que o jogo “é bonito, é nosso, como a Amazônia, os Bois de Parintins, as Cataratas, a Mangueira e a Mocidade Independente”,
O balé da perfeição sem arestas
Aos 35 minutos de um segundo tempo inacreditável – começamos ganhando de dois a zero e a Holanda foi buscar – Branco fez o terceiro gol, de falta, e transformou aquela peleja de quartas de final da Copa de 1994 no confronto boleiro de minha vida. Pleno de signos, símbolos, variações, tons, cores, ápices, barrigas, cumes, gozos, dramas, choros, um épico de forno e fogão, daqueles que honram a condição de partida de Copa do Mundo. Vinte anos depois de perder para a notável Laranja Mecânica holandesa na semifinal de 1974, uma devolução com juros na carona de uma patada mágica e improvável, quase do meio de campo. A partida com sol na moleira no Cotton Bowl, em Dallas (EUA), pôs fim a um violento drama na consciência daquele então moleque de pernas finas, ombros curtos e companhia inseparável da bola de couro e chuteiras já gastas, presentes do paizão flamenguista. O segundo dos dramas, cá entre nós.
O primeiro era o de não ter Zico como ídolo, apesar do desejo paterno. Não vi o Galinho jogar no Mengão, questão etária mesmo, e foi Júnior Capacete, o Leovegildo “vovô garoto”, a minha primeira referência, obra do título nacional de 1992 do rubro-negro carioca. Mas isto é lembrança para outra prosa, talvez em bar. Minha questão complicada em Copas e tema primeiro desse troço aqui era a Itália. O campeonato anterior, o de 1990, na terra da bota, é o primeiro de que me recordo. O Brasil caiu cedo, nas Oitavas, gol do argentino Caniggia em duelo esquecível com nossos hermanos. Dançou a Canarinho, mas eu continuei minha aventura pioneira pelas dores e delícias de um Mundial de futebol. Segui o baile, antigo televisor Philco de válvula e imagem levemente esverdeada por companhia, reforçando as fileiras da dona daquela festa, e aí reside o imbróglio: virei fã incondicional do atacante Totó Schillaci, que terminaria artilheiro, e da Azzurra – a despeito do futebol pragmático da geração capitaneada por Bergomi.
A perda do título em casa – a Itália acabou derrotada nos penais também pela Argentina (sempre ela!) e seu guarda-metas Goycochea (a campeã seria a Alemanha) – inaugurou minhas dores futebolísticas. Ostentava enormes… Sete anos! Nápoles ficou muda após aquela partida semifinal, rendendo-se à alteza de Maradona. E eu congelei choroso por incontáveis minutos, sem acreditar no ocaso do escrete de Azeglio Vicini diante de sua gente. No meu aniversário, quatro meses depois da competição, pedi de presente a camisa da Itália, não a do Brasil. A família torceu o nariz, eu dei de ombros, mas logo a paixonite pesou na minha cabeça. Foram necessários quatro anos e uma nova Copa para as coisas se ajeitarem. O gol de Branco em 94 representou, literalmente, o tiro derradeiro no romance tricolore. Mas como o destino – sofisticadamente sacana –, sempre apronta das suas, a final aconteceu justamente contra a Itália. A resolução da história é mais conhecida que roteiro do Titanic: o então melhor jogador do planeta, Baggio (boicotado por Vicini de todas as formas no Mundial ocorrido em domínios italianos), isolou o último pênalti e nós desentalamos o grito de campeão abafado por 24 anos: “é teeeetraaaaaaa!”
A vida continuou para mim (e muitos!) regida por ponteiros alucinados, segundos, minutos, horas, dias, anos e, sobretudo, Copas – medida de tempo de quatro translações, mas, acima de tudo, a contagem sinestésica e, quiçá, primordial de tudo, combustível da ilusão para seguirmos adiante. Ganhamos de novo em 2002 e perdemos várias vezes, estas na carona de meias ajeitadas em momento errado e das sete chineladas mais doídas em bumbum esculpido a samba: a derrota em casa para a Alemanha é ferida que não fecha, tal qual o Maracanazo de 50.
Fato é que muito além de mera competição, a Copa exacerba sentimentos e exalta um dos nossos maiores produtos culturais e de exportação, talento cunhado em várzea, e de guri, do qual temos obrigação moral de nos orgulhar. Ora, não há equívoco maior do que chutar a canela do mais popular esporte ao cobrar melhorias para o país. Um povo feliz, alimentado, educado e saudável, claro, tem de ser plataforma constante de nação, esta que não pode cerrar seus olhos para sua cultura oligarca e gritantes problemas seculares. Mas jamais ousemos negar a Copa e sua capacidade única de nos vestir de alma.
Não, o futebol não é apenas ópio do povo. É bonito, é nosso, como a Amazônia, os Bois de Parintins, as Cataratas, a Mangueira e a Mocidade Independente, o cair do Sol no Guaíba, o Cristo, a Paulista, as cidades históricas de Minas, a feijoada, o frevo, Olinda, o mix de sabores, olores e frescores que fazem desse torrão um Gigante, a despeito de nossas questões existenciais por demais adolescentes. Perfeição sem arestas que une moleques de oito a oitenta, a bola é, sim, um símbolo pátrio. Que o Brasil coloque sempre sua gente na cara do gol, mas jamais se envergonhe das canetas inquietas e senhoras do bom futebol – elevado, e com justiça!, ao patamar de arte. Com a identidade daqueles meninos apaixonados diante dos televisores, qual este aqui em outrora, não se brinca.
Está chegando a Copa e nós pedimos para nossos autores contarem histórias do torneio. Abaixo, um texto de Aldir Blanc sobre a final de 2006, aquela entre França e Itália.
Z de …
Quando Bum-Bum Garoto fantasiou a dieta de greve e manchou para sempre a palavra fome, sua digna esposa, Rosinha Gigoga, espumou sobre “a ira de meu Deus” e ainda lançou um raio que a parta em nossa língua: “…enquanto meu marido se definha”. Recebi uma carta indignada de minha prima de Honório Gurgel, Aparecida Josefa, a Cidefinha. Um trecho “Sou pobre, mas honesta e não me conformo. Não mereço ter meu apelido em boca de cobra”. Registro o fato porque Ceceu Rico aprontou uma surpresa na final da Copa. Trouxe a Cidefinha pra ver a pelada entre França e Itália, com o amásio (lá dela), o paramilitar Zilmério, vulgo Zinho, feito aquele jogador-enceradeira do passado. Eu entornara de com força, uma noite antes, no aniversário de Fausto Wolff , o Lobo das Esquinas, e bebia com parcimônia, durante a peleja, latas de Itaipava, o licor de melão do Serginho, a cachaça presenteada pelo Ilmar Carvalho, batidas caseiras da Mari… Quando Zinedine Zidane deu a antológica marrada na vaca italiana, minha prima emitiu uns ruídos gorgolejantes, revirou os olhos e, após vários e prolongados tremeliques, tombou ao chão, desmaiada. Ceceu, que teve no passado algum contato com urgências, despejou-lhe uma talagada de batida gogó abaixo. Ela melhorou. Visivelmente constrangido, Zilmério resmungava:
– Que coisa. Parecia a tal convulsão do Fenômeno em 98.
Ceceu, Mari e eu trocamos olhares cúmplices. Não restava a menor dúvida: prima Cidefinha teve um múltiplo orgasmo daqueles!
Dizem que, na mesma noite, desconfiado, Zilmério, em homenagem à Azurra, bancou o Grosso:
– Ataque, né? Eu sei de que qui tu tá precisando…
O ato sexual, vigorosíssimo, foi ouvido em Del Castilho. Cidefinha, em êxtase, gemia:
– Ai, Zi… Isso, Zi…
Quando Zilmério, esbagaçado, pegou no sono, minha prima ainda suspirava:
Finalmente vai começar a Copa e para esquentar um texto de Marcelo Moutinho sobre essa ansiedade que só o Mundial de Futebol desperta. Quais serão os lances inesquecíveis? Os jogos mais feios? E os mais bonitos? E o gol de placa, será de quem? A maior goleada? O maior vexame?
Bola pro mato que o jogo é de campeonato!
Olaria x Madureira em Moscou
Temos um time, como as eliminatórias e os recentes amistosos comprovaram. E, ao contrário de anos anteriores, não há nenhuma grande treta futebolística no ar. Nenhum muxoxo porque fulano ficou de fora ou sicrano foi vítima de injustiça histórica que culminará na humilhante derrota. A rigor, as antiquadas recomendações russas sobre a “demonstração de afeto homossexual” e os hilários vídeos de divulgação do torneio dão mais assunto do que a convocação dos jogadores. Resta, portanto, enfrentar mais algumas horas de pasmaceira — entrecortados pela chatíssima polêmica sobre ou torcer ou não pela Seleção — enquanto o leite ferve na panela.
Pois não vejo a hora de começar a peleja propriamente dita. Bola pro mato que o jogo é de campeonato. De Copa do Mundo. E então engrossar o coro da minoria — 130 milhões contra o resto do mundo, reforçado pela turma disposta a remar na contramão — na expectativa pelo hexacampeonato, com a disposição de trocar o melhor livro por um memorável Arábia Saudita x Egito. Sim, porque há vida além da Seleção Brasileira, e nem sempre o embate mais interessante do campeonato acontece entre gigantes como Argentina e França.
Quem já assistiu a um Madureira x Olaria na Rua Bariri bem sabe quão tocante é ver aquele trombador, com quem a bola não quis papo durante toda a partida, deslizar de carrinho pelo barro, esticar a rede adversária e correr, com o joelho esfolado e sem pensar em departamento médico, em direção à torcida que comemora como se fosse o título do Brasileirão. Nesses jogos, à margem da exuberância óbvia que exalam os gigantes das quatro linhas, a beleza nasce justamente do precário — do uniforme mal desenhado, da bizarra furada do zagueiro, da magreza subnutrida do lateral, do esforço comovente do camisa dez em honrar o número ao qual legou o rei Pelé uma mística inequívoca.
Guardadas as devidas e muitas proporções, na Copa que se aproxima também teremos alguns anticlássicos por (falta de) excelência. Que venham, então, Espanha x Portugal, Inglaterra x Bélgica, Alemanha x México, os confrontos de monta. Mas também Panamá x Tunísia, Irã x Marrocos, Senegal x Japão. Que venham as estrelas Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar. E, a seu lado, os famosos ‘quem’. Craques absolutos e pernas-de-pau de pelada no Aterro, lado a lado.
Com a compreensão previamente rogada às pendências do cotidiano, eles povoarão por um mês as telas das TVs e de nossa imaginação. Nem que seja para lembrar que perder ou ganhar é do jogo. E que o futebol, assim como a vida, é feito de gols de placa e furadas vexatórias.
Está chegando a Copa e nós vamos contar algumas histórias do torneio. Abaixo, um texto de Luiz Antonio Simas sobre o Mundial de 1982.
O SORVETE QUE EU NÃO TOMEI
Ganhar uma copa do mundo é menos prova de competência que confirmação do destino — e o nosso destino, em 1982, era levantar a taça, confirmando a máxima de que a “nêga é minha, ninguém tasca, eu vi primeiro”. Era, além disso, a chance de dizer aos coroas que tinham visto o escrete papar a Jules Rimet em 1970: eu também vi o Brasil campeão do mundo.
Imaginei o gol como nosso destino manifesto e tive um misto de pena e desprezo pelo resto do planeta. A humanidade, sem a amarelinha, era um aglomerado de gente vivendo longe da zona do agrião. E não tínhamos apenas Zico, Falcão, Sócrates e o Júnior cantando “Voa, Canarinho”. Exu, Tupã e Nossa Senhora Aparecida jogavam com a gente, conforme minha avó me explicara.
Até que veio a Itália e Paolo Rossi. Jogo fácil. Mera formalidade temperada de arte e redes estufadas. Quem disse? Eles foram fazendo gols, nós fomos empatando. O primeiro queijo é dos ratos, a primeira esmola é dos pobres e o futebol é que nem o bento que bento é o frade: o seu mestre mandou o Brasil ser campeão. Não obstante, levamos um bolo.
Perdemos.
— Vou encher a cara, disse meu avô.
Eu, fã do velho, também. Peguei as merrecas da mesada, guardadas com afinco para uma tarde de amores urgentes em certa mansão da Rua Alice, que nunca frequentei, e entrei na lanchonete pisando forte, feito pistoleiro num saloon do Velho Oeste. Caixão não tem gaveta, eu vou é torrar o dinheiro todo, já que o mundo não é mais o mundo:
— Quero um sundae grande de flocos com muita castanha.
A garçonete, aos prantos, não falou nada. Preparou o sundae e foi chorar mais um pouco a eliminação. Peguei a colher e fui dar a primeira mordida. Não consegui. Não, eu não sentia tristeza. Eu não sentia coisa nenhuma. Tudo era desencantamento — e se não faz sentido, vou sentir o quê? Fiquei ali bem umas duas horas. O sorvete derreteu.
Imaginei o estádio escuro e deserto. Um estádio vazio, com os refletores apagados, é desde então a imagem mais triste e abandonada que me ocorre para definir a não vida. Ausência de tudo, inclusive da morte. A amiga psicóloga da tia-avó disse:
— Esse menino está deprimido.
A bola, se falasse, diria:
— Esse menino não está.
Será isso a ausência da alma? Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Sou mais chegado às alegrias. O diabo é que, vez por outra, eu dou de sonhar, como ontem, com o sorvete derretendo.
Nessa minha vida de bússola descompassada, morei, criança em Bangu. Não havia sensação térmica. Era imersão tórrida.
Quase esquizofrênico, zanzei também por Copacabana, no tempo em que a Avenida Atlântica ainda seguia em mão dupla, lentos carros do Leme ao Posto 6, rés da TV Rio e seus primeiros estúdios. Os turistas usavam um bronzeador vermelho aditivado, um urucum-bull no formato de travesseiro.
Na volta ao hotel, metade da pele assada e tatuada para sempre no quarador das esteiras de palhinha, o que sobrava, ardia mais que pimenta malagueta, daquelas do Pará. O sujeito fritava a olhos nus, não era sensação. Alguns sentavam ao redor das barraquinhas de refrigerantes implorando por uma barra de gelo na cabeça. Os artistas de plantão frigiam ovos no asfalto pra lá de selvagem. Pedido feito: gema dura, por favor!
Bangu registrava a máxima.
Das ruas desenhadas com pó de pedra, o calor produzia um delírio de fluidos em chamas.
Não era sensação apenas, qualquer um derretia ao meio-dia.
O ventilador, tonto de tanto girar, pipocava no piso da sala. Mais barulho que eficiência, suas palhetas lembravam hélices de um antigo Electra da ponte aérea.
Recentemente criaram e distribuíram nas ruas os termômetros com anúncios publicitários. Cá pra nós, aquelas torres com números digitais, apresentando graus centígrados dignos de recordes enquanto as autoridades climáticas, desmentindo a quentura, amenizam com leques o teu suor, agride.
Parênteses.
Outra categoria que usualmente contraria os dados de um verão abrasador é a de taxista.
Você precisa implorar, desidratado, pra ligar o ar condicionado e ainda escuta um grunhido enquanto os vidros são fechados.
Voltando à vaca quente, a novidade é a sensação térmica.
Com ares de fim de mundo, o sujeito, quase um beduíno do Saara, se achando rejeitado no purgatório, anota a última frase do apresentador com um dedo no mapa virtual: “Na verdade, é apenas uma sensação térmica!”.
Recordo um vizinho que, pego pela Lei Seca com um litro de uísque na cabeça, hálito de barril de pólvora, se desculpa ao agente da operação: “Meu camarada, parece que eu bebi, né? Mas é só a sensação. Tô bonzinho!”.
Nestas perguntas triviais Mauro fala de poesia, do próprio livro e, como não podia deixar de ser, analisa a conjuntura. Afinal, o que espera o poeta das eleições e da Copa do Mundo?
_Você é dirigente partidário, professor, poeta e foi candidato a presidente. Quem é Mauro Iasi?
No momento pai do Camilo (do Gi e da Má) e em breve avó do Tom. Sou um educador popular, emprestado para a Universidade, e, quando crescer, quero ser poeta e comunista.
_Por que você diz que “Outros tempos” reúne poemas “noturnos”?
Meus poemas sempre foram militantes, comprometidos com a luta e, por isso mesmo, com a paixão e a vida. Acontece que, às vezes, a vida fica difícil, como agora. São tempos de retrocesso, de abismos, de derrota e a poesia reflete tudo isso. Mas, é de noite que a gente sonha, não é?
UM LIVRO
“Versos não se escrevem para a leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se (…) Repugna-me dar a chave de meu livro. Só quem for como eu tem essa chave”.
Mário de Andrade. Poesias completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Edusp, 1987
_Toda poesia é política?
Toda poesia viva é política, toma partido, escolhe seu lado, sofre, cicatriza. Poesia exige sensibilidade diante da vida e aquele que consegue ficar imune diante da injustiça do mundo, deste pais oligarca e escravista, tem alguma coisa de errado. O caráter político da poesia não se encontra só naquilo que ela diz, em seu conteúdo, a poesia é também forma, ritmo, imagem e sensação que se sugere àquele que lê. Ela provoca e incita o mundo a mudar para continuar vivo.
_Você tem um poeta preferido?
Fica difícil dizer um só. Fui criado lendo Neruda, Guillén, Vallejo, descobri como que tomado por um furacão o enorme Maiakovski e Brecht. Mas quem primeiro me mostrou a força que a poesia tem e me fez levantar do chão da vida, foi Drummond. Agora, quem é brasileiro e da minha geração logo aprendeu que poesia vem junto com a música e daí meus poetas são Aldir Blanc, Victor Martins, Cacaso, Fernando Brant, Chico Buarque entre tantos outros.
_Você arrisca previsões para 2018? O Brasil ganha a Copa? Quem será eleito presidente?
Difícil. Vai ter muita luta e muita coisa vai mudar. No momento estou torcendo contra, contra a Reforma da Previdência e o saco de maldades do usurpador. Desde Johan Cruyff eu torço para a Holanda, ela está fora da copa este ano, mas não importa, torço mesmo assim. Não seria interessante se quem estivesse disputando por fora das regras da FIFA acabasse ganhando? Viva o Poder Popular, quem sabe?
Para participar é só inserir o código MORULANAFOLIA no carrinho de compras que o desconto aparece. Vale lembrar ainda que o frete é grátis pra todo o Brasil. Clique no livro e aproveite a promoção.
O Flamengo joga nesta quarta-feira a final da Copa Sul-Americana com o Independiente, equipe argentina que levou a melhor na primeira partida da disputa. Os dois times repetem a decisão da Supercopa da Libertadores de 1995. Naquela ocasião, o Independiente também venceu o primeiro jogo e a vitória rubro-negra no Maracanã não foi suficiente para virar o placar.
O jogo do Maraca ficou marcado na memória de muitos flamenguistas que lotaram o estádio e seu entorno. Rodrigo Ferrari, livreiro, dono da Livraria Folha Seca e personagem fundamental do Rio de Janeiro, contou sobre aquela noite em crônica para o livro “O meu lugar”, editado pela mórula em 2015. Vale a pena conferir!
Sururu no Maracanã
Rodrigo Ferrari
Saltou na praça da bandeira, pois o trânsito àquela altura estava insuportável. Passou correndo entre os carros parados, as buzinas comendo soltas, um barulho dos diabos, um monte de gente correndo e gritando Mengo, Mengo, Mengo! Uns poucos desavisados que não tinham nada a ver com o jogo passavam por ali sem querer, ficando putos da vida. Esses aprenderam: dia de Flamengo no Maraca, melhor é dar a volta.
Mas ele corria apreensivo, pois ainda não tinha o ingresso e sabia muito bem o que isso significava. Com aquele tanto de gente ali a bilheteria devia estar uma loucura! O radinho rubro-negro na mão esquerda ia apertado, os passos acelerados no compasso do coração, na cabeça apenas a esperança de que todo o esforço não fosse em vão, que o time correspondesse…
Ia sempre ao Maracanã, desde que jogasse o Flamengo. Nos domingos de jogo já acordava diferente, todos os pensamentos giravam em torno da partida, queria ler os jornais, ver os noticiários, estar por dentro… O Mengo era tudo, as esperanças, desilusões, aspirações… Quando comemorava um gol na arquibancada parecia um deus, voando pelos céus com asas de euforia, abraçando desconhecidos irmanados pelo mesmo sentimento de grandiloquência.
Mas agora só pensava na galera em volta da bilheteria. Aquilo lhe tirava o sossego. Devia ter comprado ingresso antes, como sempre, mas dessa vez não deu. Subiu a pé o viaduto Oduvaldo Cozzi, pois adorava aquela visão do cume da ladeira e adorava descer correndo a rua, facilitado pelo engarrafamento homérico. Quando bateu o olho lá de cima correu-lhe um frio na espinha: a bilheteria era uma muvuca só!
O radinho vinha colado ao ouvido, mas não prestava atenção nenhuma no que os comentaristas diziam. Desligou o aparelho e chegou perto dos camelôs que vendem cerveja e camisas em volta dos guichês. A massa era inacreditável! E pensar que o Flamengo era um dos últimos colocados no Campeonato Brasileiro e aquele era um torneio caça-níquel qualquer. Precisava golear o time argentino, então a diretoria diminuiu o preço dos ingressos e convocou a torcida.
Pensava na galera e se emocionava. Todos tinham aceitado o chamado naquela quarta-feira à noite, a Praça da Bandeira estava intransitável, um tumulto federal. Ouvira no rádio a previsão de cem mil pessoas e ficara abismado. Esse clube despertava paixões inenarráveis. Cada crioulo, cada dona de casa, cada playboy daqueles tinha um compromisso de fé com as cores rubro-negras e estavam dispostos a levar aquilo às últimas consequências. O Flamengo era tudo pra eles, e eles eram acima de tudo Flamengo!
E no momento eram acima de tudo massacrados. Enfrentar aquela selva pra comprar ingresso era um absurdo! Ficava pensando nos jornalistas e dirigentes falando dos problemas do Maraca sem saber quais são as reais dificuldades e sem tocar no ponto crucial da questão: o tratamento ao torcedor. O verdadeiro torcedor, aquele que sofre nas mãos dos profissionais que se instalaram em torno do jogo, pessoas sem envolvimento com o assunto e que enriquecem com a sua desmoralização.
— Porra, e ainda por cima só três guichês abertos! Isso é coisa de vascaíno, não pode ser! Manda a mãe dele vir comprar, seus…!!!
Não havia fila. Um bolo de gente parada, muitos ainda decidindo se iam encarar ou não, uma gritaria dos diabos… Foi ganhando caminho, passando por alguns indecisos, até parar quando não dava mais pra seguir. Ali ficou naquela dança que a moçada vai fazendo, um passinho miúdo que parece não estar andando, mas que quando se vê não dá nem pra voltar. Os corpos vão se juntando e chega uma hora que todo mundo fica tentando ultrapassar o outro, sem cerimônia nenhuma.
Olhava pros lados e percebia na fisionomia dos outros o desespero que também devia estar estampado na sua. Faltavam três metros para chegar à boca do guichê, mas parecia que não chegaria nunca.
A todo tempo se ouvia: “não empurra, porra”, “ai, eu tô passando mal” ou “eu quero um ingresso, filho da puta!”. Ele ia quieto, sem dar um pio. Já tinha passado aquilo algumas vezes, mas essa era sem dúvida a mais custosa. Foi aí que percebeu que a única maneira de sair depois de comprar o ingresso era por cima das pessoas. Isso mesmo, por cima! Alguns tentavam voltar normalmente, mas não dava, a massa era compacta, não havia mão e contramão. Numa hora de muito esmagamento não se conteve: “calma, porra, não empurra que tá chegando!”. E mordia o lábio, esperançoso.
Ninguém se mexia, parecia que ficariam ali pelo resto da vida. Cada espaço conquistado era milimetricamente ocupado, senão o vizinho já se chegava, não dando moleza. Também gritava quando algum felizardo tentava voltar na marra: “sobe, sobe!!!”. Um gaiato, poliglota, mandava: “up, up!!!”. O cara ficava meio indeciso e finalmente, com o ingresso na mão e a ajuda dos outros, subia.
É certo que não sem dificuldade. Teve um que não chegou nem a comprar o ingresso, lá pelas tantas gritou pra trás:
— Não ‘tô guentando’, quero sair!
Quase rolou uma gargalhada geral. Um tapa só não voou por falta de espaço. O gordinho tava desesperado, e viu que ia ter de subir. Apoiou os cotovelos em alguns ombros e fez toda a força que podia. Não saiu do lugar, seu corpo estava totalmente comprimido pela massa. Algumas mãos surgiram pra ajudar e ele foi alçado e logo depois transportado por outras mãos para fora da multidão.
A saída daquele gordinho fora sensacional. Pulara pra frente, já estava a quase um braço da bilheteria. Ali na boca todo mundo esticava o dinheiro e gritava ao mesmo tempo.
— Vai logo, filho da puta, que eu tô morrendo aqui!
— Cinco! Cinco!
Enquanto ajudava os outros a subir, preocupava-se em arranjar um jeito simples de fazer o mesmo. Já vira que era a única saída e queria resolver aquilo o mais rápido possível. Antevia o momento delirante da aquisição do ingresso e já pensava nos detalhes com que iria contar essa façanha pros outros. A camisa do Flamengo estava encharcada. Teve uma hora em que o radinho, preso na mão esquerda, foi quase esmagado, chegando a fazer crec. Inacreditavelmente, tava chegando…
Encostou a mão na parede e forçou o corpo pra trás, conseguindo um espaço razoável naquela loucura toda. Na boca do guichê várias mãos choravam um ingresso, enquanto o bilheteiro, impassível, parecia que estava no Municipal. O problema da galera não era nem com ele, e pelo que pôde perceber ele atenderia mais rápido os menos exaltados.
Já arquitetara tudo: havia um buraco em forma de meia-lua pra passar o dinheiro na altura da cintura e um quadrado na altura dos olhos. Ia ficar segurando aquele espaço e quando tivesse comprado colocaria o pé no buraco de baixo e, forçando o corpo contra as pessoas, se impulsionaria pra cima. Todos mostravam o dinheiro pelo quadrado e gritavam, ele ficou mirando o olho do sujeito e segurando o dinheiro pela janelinha de baixo, sem dizer nada, só mostrando a grana e olhando firme. Deu certo, o cara terminou de dar o troco pro outro e foi direto no dele. Só não contava com a indagação do bilheteiro:
— Quem foi que me deu esse dinheiro aqui por baixo?
Quase meteu a mão dentro do guichê e a sorte foi que ninguém gritou junto. Gelou por um segundo só de pensar que outros poderiam requisitar o seu ingresso. Já imaginou, naquele sururu! Segurou o radinho com força, espremeu o ingresso entre os dedos da outra mão e tentou colocar o pé no buraco. Ia subir direto, não ia nem olhar pro lado. Levou um cutucão do cara de trás e não alcançou a altura. Botou foi a canela mesmo, que neguinho já tava querendo sumir com ele pra ocupar o espaço, fez força pra cima e sentiu a galera empurrando. A canela esfolada seria a prova do esforço e um troféu merecido. Colocou o outro pé e deu um pulo, caindo em cima de todo mundo.
Estava feliz, uma felicidade vermelha e preta, um sentimento que ele já tinha experimentado e que considerava privilégio só de rubro-negros. Não concebia um vascaíno ou tricolor poder sentir essa alegria. O futebol só tinha graça pelo Flamengo, e mesmo a Seleção só servia se tivesse um jogador do Flamengo como craque.
Missão cumprida, virou de barriga pra baixo e olhou pra cara dos outros, apavorados, sem saber se deveriam ou não estar ali, com um outro deitado na cabeça deles. Por um momento ficou parado, sem ninguém deslocá-lo, então gritou:
— ‘Vambora’, gente, agora é com vocês!
Todo mundo que podia se mexer levantou os braços e foi espalmando seu corpo sobre as próprias cabeças, ele radiante, sendo carregado até o fim da muvuca pra aterrissar com as mãos no chão e sair comemorando como um doido o feito inesquecível. Era Flamengo, era um herói! Daria tudo pra alguém ter visto! Olhava pros lados sem saber direito pra onde ir. A canela sangrando estava ali, graças a deus, para não deixá-lo mentir.
Sou devoto amoroso do Brasil e dos seus encantamentos. Nesse ponto, e dou o braço a torcer, quem está certo é o velho compositor baiano: “quem é ateu e viu milagres como eu”… E nossos milagres, camará, são muitos, temperados por tambores e procissões; pela Virgem no andor, o caboclo na macaia e o preto velho no gongá. Somos, os brasileiros, filhos do mais improvável dos casamentos, entre o meu compadre Exu e a Senhora Aparecida – a prova maior de que o amor funciona. E Tupã, que se vestiu com o cocar mais bonito para a ocasião, celebrou a cerimônia entre a cachaça e a água benta.
Uma das nossas mãos está calejada pelo contato com a corda santa do Círio de Nazaré – a outra tem os calos gerados pelo couro do atabaque que evoca as entidades. As mãos do Brasil e do seu povo. Nossos ancestrais passeiam pela vastidão da praia sagrada dos índios de Morená, retornam à Aruanda nas noites de lua cheia, silenciam no Orum misterioso das almas e florescem encantados nas folhas da Jurema. Os guerreiros de nossas tropas trazem a bandeira do Humaitá, o escudo de Ogum e o estandarte da pomba branca do Divino Espírito Santo – a mesma pomba que pousou na ponta do opaxorô de Obatalá. São essas as nossas divisas de guerra e paz; exércitos do Brasil.
E digo isso porque chegou o dia de Cosme e Damião. Dia brasileiro dos santos estrangeiros e orixás africanos. Dia de igreja aberta, missa campal, terreiro batendo, criança buscando doce, amigos bebendo saudades e aconchegos. Dia de comer caruru na rua. A tradição brasileira de Cosme e Damião é a mais festiva do mundo. O bom, nessas horas que antecedem as folganças dos santos gêmeos, é vadiar no clima da folia, tomando pinga e ouvindo umas cantigas bonitas sobre os protetores dos meninos. É hora de bater samba de roda pra Dois-Dois, na palma da mão e no ponteio da tirana.
Aqui em casa toquei a alvorada lembrando as cantigas mais bonitas que conheço em homenagem aos gêmeos. É de comover pedra! Quando ouço as louvações pros santinhos, tenho forte desconfiança de que ainda morro um dia de tanta belezura do Brasil – um amor que não se explica, feito cachaça da boa, jabuticaba, sorvete de cupuaçu, beira de rio, gol do meu time, cerveja gelada, mulher amada, amigos do peito e caruru de Cosme. E que no dia de cantar pra subir, um samba de roda desses me carregue ao encontro dos meus pela Noite Grande.
_Quinta, 27/07, às 15h: Alberto Mussa, Felipe Botelho Corrêa e Luiz Antonio Simas, convidados da Flip 2017, vão reviver os tempos em que Lima Barreto se sentava no Café Papagaio. A mediação da conversa é de Mariana Filgueiras e o papo acontece no Café Paraty, rua do Comércio, 253.
_Sexta, 28/07, às 15h: dia de ouvir Luiz Antonio Simas e Beatriz Resende revisitando os lugares do Rio de Janeiro por onde Lima Barreto passou, através de personagens de seus romances e contos. “Subúrbios”, no Auditório da Matriz.
_Sábado, 29/07, às 18h: Marcelo Moutinho, Henrique Rodrigues e Fernando Molica batem um papo e lançam “Conversas de Botequim” no Encontros Malê em Paraty. Na Rua do Fogo, 04 – Centro Histórico.
Também no sábado, o livreiro Rodrigo Ferrari fará da Rua da Matriz uma filial da Rua do Ouvidor. A partir das 18h, a versão itinerante da Folha Seca oferecerá ao público uma seleção cuidadosa de obras relacionadas à cultura carioca. Os autores que sempre estão pela Folha Seca, fazendo dela a livraria mais charmosa do Rio de Janeiro, também estarão por lá. E às 21h o samba come solto!