Com uma obra que transita entre a pesquisa literária e a tradução, tendo também publicado um romance autobiográfico (Cherrizinho, 2014), Martine Kunz denota um cultivo íntimo da palavra, sabendo dela pujança e precariedade em profundas nuances. Agora, com o cão, Martine inaugura um outro movimento, acentuando tanto mais esse vínculo: lança sua escrita ao solo fértil da narrativa ficcional, e irrompem nove contos ricos em pluralidade de vozes e temas, permeados de um refinado humor crítico, concomitante a uma tessitura poética.
As narrativas embrenham-se no ordinário e no extraordinário da vida, confrontando a “nossa pouca humanidade” diante dos olhos de um cão: é o apagamento da memória, a pífia homenagem aos mortos, “quais mortos?”, os assassinatos como quem escova os dentes, o cansaço dos dias, a maledicência e a hipocrisia de praxe, tudo uso corriqueiro, enfim, banal. As narrativas embrenham-se no ordinário e no extraordinário da vida: é também a carta que se escreve afagando a distância, a sede de diálogo, o desejo da fantasia, a alegria de se perceber pequena parte de um todo, a teimosia pela memória, a cama maciça dos amantes, tudo isso que é fôlego e nos embala “como se cobre uma criança adormecida na doce indiferença do mundo que ainda não conhece, mas em que sonha dar seus primeiros passos.”
Martine sabe da palavra o grão
(natureza de assombro e espanto)
enigma que permanece — atravessando.
Sara Síntique
CONTOS