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PTSC #21

Foto: Leo Aversa - Crédito obrigatório.
Foto: Leo Aversa

Marcelo Moutinho é carioca de Madureira, Império Serrano e Tricolor. Essas são três informações fundamentais sobre o escritor e que aparecem nos primeiros 15 minutos de papo com ele. Jornalista, que ainda exerce a profissão, é autor de diversos livros de contos, crônicas e infantis. Em 2015, publicou a antologia de crônicas “Na dobra do dia” (Rocco) e organizou para a Mórula “O meu lugar”, em parceria com Luiz Antonio Simas.

Não é difícil perceber a presença daquelas características na obra de Moutinho. Em seus contos e crônicas um certo Rio de Janeiro suburbano, que pega ônibus, vai ao boteco e anda de havaianas é muito presente. Como ele explica abaixo, busca “gente comum” para sua literatura. Talvez por isso seja fácil encontrá-lo pelas ruas da cidade. Nem precisa seguir no Facebook. É só aparecer nas rodas de samba do Bip Bip ou do Zé Luiz do Império em Oswaldo Cruz, nos ensaios de rua do Império Serrano, no balcão da livraria Folha Seca ou no Bar Brasil. É o tal “viço do cotidiano” que o escritor tanto persegue.

Para a estreia do novo site da mórula, nada melhor do que um papo longo, sobre literatura, política, samba e futebol – tudo que nos interessa. Fiquem à vontade, a cerveja é sempre gelada. É só se acomodar no balcão e curtir nosso ser complexo #21. Com vocês, Marcelo Moutinho:

 

_Uma característica muito presente nos seus textos é o cotidiano do Rio de Janeiro, tipos triviais da cidade, detalhes da dinâmica urbana. É correto afirmar que o Rio é sua maior inspiração?

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UM LIVRO

Autotomia

Ganhando meu pão
Diante do perigo, a holotúria se divide em duas:
deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo,
salvando-se com a outra metade.

Ela se bifurca subitamente em naufrágio e salvação,
em resgate e promessa, no que foi e no que será.

No centro do seu corpo irrompe um precipício
de duas bordas que se tornam estranhas uma à outra.

Sobre uma das bordas, a morte, sobre outra, a vida.
Aqui o desespero, ali a coragem.

Se há balança, nenhum prato pesa mais que o outro.
Se há justiça, ei-la aqui.

Morrer apenas o estritamente necessário, sem ultrapassar a medida.
Renascer o tanto preciso a partir do resto que se preservou.

Nós também sabemos nos dividir, é verdade.
Mas apenas em corpo e sussurros partidos.
Em corpo e poesia.

Aqui a garganta, do outro lado, o riso,
leve, logo abafado.

Aqui o coração pesado, ali o Não Morrer Demais,
três pequenas palavras que são as três plumas de um voo.

O abismo não nos divide.
O abismo nos cerca.

Poemas
Wislawa Szymborska
Tradução de Regina Przybycien
Companhia das Letras, 2011

Sim, na medida em que é a cidade onde vivo. Caso morasse em outro lugar, possivelmente esse seria o cenário que apareceria em meus contos e em minhas crônicas. No fundo, um cenário que muitas vezes ganha status de personagem nas histórias que conto. Me interessa o cotidiano, a condição aparentemente ordinária da nossa vida no dia a dia. Acho que o advérbio cabe mesmo nesse caso. Porque a rotina esconde coisas fantásticas, que a literatura pode reencenar, ressignificando-as para além do ordinário. Gosto de prestar atenção nos diálogos que ouço na rua, de identificar traços insuspeitos nesses que você chama de tipos triviais. E, mesmo quando a pegada de ficção é maior – caso dos contos -, tento criar personagens que poderíamos, grosso modo, identificar como gente comum. Caixas de supermercado, camareiras de hotel, aposentados, costureiras, trocadoras de ônibus. Pessoas com quem esbarramos a toda hora, mas cujos dramas, alegrias, dores, encantamentos, costumamos desconhecer, passar ao largo.

_Você busca intencionalmente dar destaque ao subúrbio da cidade na sua literatura? Por quê?

Primeiro, porque o subúrbio é sub-representado na literatura brasileira contemporânea. O subúrbio e, ampliando um pouco, a chamada classe média baixa. Além disso, fui morador do subúrbio, mais especificamente do bairro de Madureira, que frequento até hoje, muito por conta do meu querido Império Serrano. Sempre senti falta de encontrar aquelas ruas, aquele modo de vida, nos livros que lia. É um universo incrível, riquíssimo, ao qual a literatura ultimamente me pareceu alheia. Não que a literatura tenha obrigação de falar de algo, longe disso, mas pessoalmente isso me incomodava. Lembro de quando, há alguns anos, assisti ao filme “Chuvas de Verão”, do Cacá Diegues. Uma história que se passa em Marechal Hermes, centrada no protagonista vivido pelo Jofre Soares e em seus vizinhos. Fiquei absolutamente chapado. Acho que a ficha caiu naquele momento. Pensei: é sobre isso que eu quero escrever.

_Você é um escritor que produz muito, mas que exerce também o jornalismo. Passa pela sua cabeça viver apenas de literatura?

Não. A questão financeira é o grande entrave, evidentemente. Mas desconfio também que se fosse viver só de literatura talvez perdesse o contato com viço desse cotidiano a que fiz alusão na primeira resposta. Tenho um pouco de medo de cair no ensimesmamento, que é tudo o que não gostaria de ver ressoar nos meus textos.

_Você foi um dos idealizadores de uma mobilização recente de escritores e profissionais do mercado literário pela democracia, contra a tentativa do que classificam como golpe em curso no Brasil. O manifesto foi criticado por diversas razões. Por que fazer um manifesto de escritores?

A crítica é parte da democracia. Mas não consigo compreender a tese de que, ao fazer um manifesto pela democracia, os escritores tentam se distinguir do conjunto da sociedade. Inclusive porque sequer foi um manifesto apenas de escritores. Entre os signatários, estavam pessoas de todo o universo do livro. Diagramadores, revisores, editores, ilustradores, designers, contadores de histórias… Ajudei a organizar um documento com assinaturas de profissionais do livro simplesmente porque faço parte do universo do livro. E isso não significa que tenhamos mais ou menos importância do que qualquer outra categoria. Adoraria ver manifestos de motoristas de ônibus, office boys, lixeiros, policiais, denunciando o golpe que foi dado, à revelia da lei, contra uma presidente da República eleita nas urnas. Com todo respeito a quem pensa diferente, acho que acusar de elitista nossa inciativa é, em primeiro lugar, não compreender a amplitude do movimento que foi feito. E, para além disso, não se ter a dimensão da gravidade do que aconteceu no Brasil.

_Nós sabemos que além de escritor, você é fanático por futebol e pelo Império Serrano. Conte-nos uma partida e um desfile inesquecíveis.

O maior jogo de futebol a que assisti na vida foi a final do Campeonato Estadual de 1995. A partida do célebre gol de barriga de Renato Gaúcho. Pelo título do Fluminense, claro, mas sobretudo pelos fatores que o envolveram: o centenário do maior rival, que gastou até o que não tinha naquele ano e tinha um time de craques como o Romário, o então jejum de títulos do Tricolor, o gol inusitado em um momento em que tudo parecia perdido. Foi, também, uma daquelas ocasiões em que a arrogância perde no fim.

Quanto ao carnaval, meu desfile inesquecível se deu em 1996 – curiosamente, percebo agora, as datas são próximas. Foi a primeira vez em que entrei na Avenida com o Império Serrano. A escola estava homenageando o Betinho, um cara que sempre foi referência para mim. Ele já bem debilitado pelo HIV. E o Império vinha com um hino daqueles que o distinguiram como o maior celeiro de sambas-enredos. Betinho era chamado de “moderno Dom Quixote”, talvez a definição mais precisa daquilo que ele foi durante toda a existência. Não conhecia nenhum componente da escola na época. Então telefonei para a quadra, perguntei como poderia comprar uma fantasia e tal. Uma semana depois, estava em Madureira pegando a roupa. No dia do desfile, procurei pessoas que estavam vestidas como eu e me juntei para tomar três ou quatro cervejas, na cara de pau. Lembro, durante a concentração, de ver a pobreza dos carros, da simplicidade das fantasias. Mas quando o Império pisou na Sapucaí, pareceu que isso tudo já não importava. Os componentes cantavam e choravam. Ao mesmo tempo. Poucas vezes vi algo assim na Avenida. Uma epifania, no sentido da compreensão quase mágica da essência de algo. No caso, da essência do carnaval. Acho que vou passar o resto da vida querendo experimentar de novo aquele momento.

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