Está acabando a primeira fase da Copa 2018 e já estamos com saudade. Antes de começar o mata-mata um texto que dá a dimensão da paixão pelo futebol e das emoções que vêm por aí.
O jornalista e escritor Fábio Fabato conta sobre seu namoro com a Itália e o amor pela seleção Canarinho. E nos lembra que o jogo “é bonito, é nosso, como a Amazônia, os Bois de Parintins, as Cataratas, a Mangueira e a Mocidade Independente”,
O balé da perfeição sem arestas
Aos 35 minutos de um segundo tempo inacreditável – começamos ganhando de dois a zero e a Holanda foi buscar – Branco fez o terceiro gol, de falta, e transformou aquela peleja de quartas de final da Copa de 1994 no confronto boleiro de minha vida. Pleno de signos, símbolos, variações, tons, cores, ápices, barrigas, cumes, gozos, dramas, choros, um épico de forno e fogão, daqueles que honram a condição de partida de Copa do Mundo. Vinte anos depois de perder para a notável Laranja Mecânica holandesa na semifinal de 1974, uma devolução com juros na carona de uma patada mágica e improvável, quase do meio de campo. A partida com sol na moleira no Cotton Bowl, em Dallas (EUA), pôs fim a um violento drama na consciência daquele então moleque de pernas finas, ombros curtos e companhia inseparável da bola de couro e chuteiras já gastas, presentes do paizão flamenguista. O segundo dos dramas, cá entre nós.
O primeiro era o de não ter Zico como ídolo, apesar do desejo paterno. Não vi o Galinho jogar no Mengão, questão etária mesmo, e foi Júnior Capacete, o Leovegildo “vovô garoto”, a minha primeira referência, obra do título nacional de 1992 do rubro-negro carioca. Mas isto é lembrança para outra prosa, talvez em bar. Minha questão complicada em Copas e tema primeiro desse troço aqui era a Itália. O campeonato anterior, o de 1990, na terra da bota, é o primeiro de que me recordo. O Brasil caiu cedo, nas Oitavas, gol do argentino Caniggia em duelo esquecível com nossos hermanos. Dançou a Canarinho, mas eu continuei minha aventura pioneira pelas dores e delícias de um Mundial de futebol. Segui o baile, antigo televisor Philco de válvula e imagem levemente esverdeada por companhia, reforçando as fileiras da dona daquela festa, e aí reside o imbróglio: virei fã incondicional do atacante Totó Schillaci, que terminaria artilheiro, e da Azzurra – a despeito do futebol pragmático da geração capitaneada por Bergomi.
A perda do título em casa – a Itália acabou derrotada nos penais também pela Argentina (sempre ela!) e seu guarda-metas Goycochea (a campeã seria a Alemanha) – inaugurou minhas dores futebolísticas. Ostentava enormes… Sete anos! Nápoles ficou muda após aquela partida semifinal, rendendo-se à alteza de Maradona. E eu congelei choroso por incontáveis minutos, sem acreditar no ocaso do escrete de Azeglio Vicini diante de sua gente. No meu aniversário, quatro meses depois da competição, pedi de presente a camisa da Itália, não a do Brasil. A família torceu o nariz, eu dei de ombros, mas logo a paixonite pesou na minha cabeça. Foram necessários quatro anos e uma nova Copa para as coisas se ajeitarem. O gol de Branco em 94 representou, literalmente, o tiro derradeiro no romance tricolore. Mas como o destino – sofisticadamente sacana –, sempre apronta das suas, a final aconteceu justamente contra a Itália. A resolução da história é mais conhecida que roteiro do Titanic: o então melhor jogador do planeta, Baggio (boicotado por Vicini de todas as formas no Mundial ocorrido em domínios italianos), isolou o último pênalti e nós desentalamos o grito de campeão abafado por 24 anos: “é teeeetraaaaaaa!”
A vida continuou para mim (e muitos!) regida por ponteiros alucinados, segundos, minutos, horas, dias, anos e, sobretudo, Copas – medida de tempo de quatro translações, mas, acima de tudo, a contagem sinestésica e, quiçá, primordial de tudo, combustível da ilusão para seguirmos adiante. Ganhamos de novo em 2002 e perdemos várias vezes, estas na carona de meias ajeitadas em momento errado e das sete chineladas mais doídas em bumbum esculpido a samba: a derrota em casa para a Alemanha é ferida que não fecha, tal qual o Maracanazo de 50.
Fato é que muito além de mera competição, a Copa exacerba sentimentos e exalta um dos nossos maiores produtos culturais e de exportação, talento cunhado em várzea, e de guri, do qual temos obrigação moral de nos orgulhar. Ora, não há equívoco maior do que chutar a canela do mais popular esporte ao cobrar melhorias para o país. Um povo feliz, alimentado, educado e saudável, claro, tem de ser plataforma constante de nação, esta que não pode cerrar seus olhos para sua cultura oligarca e gritantes problemas seculares. Mas jamais ousemos negar a Copa e sua capacidade única de nos vestir de alma.
Não, o futebol não é apenas ópio do povo. É bonito, é nosso, como a Amazônia, os Bois de Parintins, as Cataratas, a Mangueira e a Mocidade Independente, o cair do Sol no Guaíba, o Cristo, a Paulista, as cidades históricas de Minas, a feijoada, o frevo, Olinda, o mix de sabores, olores e frescores que fazem desse torrão um Gigante, a despeito de nossas questões existenciais por demais adolescentes. Perfeição sem arestas que une moleques de oito a oitenta, a bola é, sim, um símbolo pátrio. Que o Brasil coloque sempre sua gente na cara do gol, mas jamais se envergonhe das canetas inquietas e senhoras do bom futebol – elevado, e com justiça!, ao patamar de arte. Com a identidade daqueles meninos apaixonados diante dos televisores, qual este aqui em outrora, não se brinca.