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crônica

O Brasil nasceu da melancolia de Zâmbi

Zambiapungo – o senhor supremo – se entristeceu um dia, cansado da solidão do poder e das tarefas da criação. Cogitava mesmo, o pai maior, interromper o curso do mundo. Faltava alguma coisa que justificasse aquela grandeza toda. Zâmbi, que sabia de tudo, achava que tinha criado todas as coisas necessárias para a vida. Mas estava triste e recorreu aos inquices, voduns e orixás, seus filhos diletos.

Pediu a Zaratempo que inventasse algo para despertar seu interesse e o impedir de desistir do mundo. Tempo criou as estações do ano com todas as suas mudanças. Zâmbi gostou, mas não sorriu.
Zâmbi chamou Katendê e pediu a mesma coisa. Katendê, o senhor das jinsabas (folhas), falou ao pai sobre o poder medicinal das plantas. O deus supremo se interessou um pouco, mas ainda assim não sorriu.

Matamba foi a próxima a tentar alegrar Zâmbi. A senhora das ventanias mostrou a força dos furacões e o baile fabuloso dos relâmpagos. Zâmbi olhou, aplaudiu admirado, mas continuou triste. E assim vieram todos os deuses do Congo. Vunji trouxe as crianças; Angorô inventou o arco-íris; Gongobira deu a Zâmbi um rio de peixes coloridos; Dandalunda chamou as luas que mudam marés; Mutalambô fez um banquete com as caças trazidas das densas florestas; Roxo-Mucumbi forjou ferramentas e adagas no ferro em brasa; Lembá Dilê conduziu um cortejo branco de pombas, cabras e caramujos.

Zâmbi gostou e agradeceu, mas continuou triste.

Até que Zâmbi perguntou se Zaze, o dono do fogo, sabia de alguma coisa que pudesse afastar aquele banzo de melancolia. Zaze, a quem os iorubás chamam de Xangô, consultou o oráculo e imolou um bode branco em sacrifício. As carnes foram repartidas entre as divindades do Congo. Zaze, em seguida, aqueceu a pele do bode na fogueira. Ainda com o fogo, tornou oco o pedaço de um tronco seco da floresta. Sobre uma das extremidades do tronco oco, Zaze esticou a pele do animal e inventou Ingoma – o tambor.

Zaze começou a percutir o couro com toda a força e destreza. Aluvaiá, aquele que os iorubás conheciam como Exu e os fons como Legbá, gingou ao som do tambor de Zaze e, logo depois, todos os deuses do Congo, ao batuque sincopado do Ingoma, fizeram a primeira festa na manhã do mundo.

Zambiapungo gostou do fuzuê do tambor de Zaze e descansou feliz. Era isso que faltava. Zâmbi sorriu.

Um filho de Zaze, muito tempo depois, foi capturado na floresta e jogado no ventre escuro de um navio. Esse negro do Congo chegou, entre correntes de ferro e centenas de outros homens, ao outro lado da calunga grande – na terra onde Zambiapungo era mais conhecido como Tupã.

O filho de Zaze, mesmo entre a dureza das correntes e o cheiro da morte do seu povo, conseguiu levar para o país de Tupã o Ingoma inventado pelo pai.

Ao chegar do outro lado do mar, submetido – e insubmisso – ao horror do cativeiro, o filho de Zaze bateu forte no tambor, convidou para o fuzuê o povo de Tupã e chamou, com a força do ritmo ancestral, os deuses das matas, esquinas e macaias. Eles vieram, atraídos pelo fervor das danças e pelo clamor das festas, e resolveram ficar.

Até mesmo alguns dos que chegaram para dominar a terra foram seduzidos e civilizados pela festa. A generosa festa dos filhos de Zâmbi, nos terreiros grandes do Brasil.

O tambor, filho de Zaze, é o pai do nosso povo.

Luiz Antonio Simas é autor de “Pedrinhas miudinhas”, livro em que este texto foi originalmente publicado.

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Uma paixão

Está acabando a primeira fase da Copa 2018 e já estamos com saudade. Antes de começar o mata-mata um texto que dá a dimensão da paixão pelo futebol e das emoções que vêm por aí.

O jornalista e escritor Fábio Fabato conta sobre seu namoro com a Itália e o amor pela seleção Canarinho. E nos lembra que o jogo “é bonito, é nosso, como a Amazônia, os Bois de Parintins, as Cataratas, a Mangueira e a Mocidade Independente”,

Roberto Baggio depois daquele pênalti inesquecível em 1994

 

O balé da perfeição sem arestas

 Aos 35 minutos de um segundo tempo inacreditável – começamos ganhando de dois a zero e a Holanda foi buscar – Branco fez o terceiro gol, de falta, e transformou aquela peleja de quartas de final da Copa de 1994 no confronto boleiro de minha vida. Pleno de signos, símbolos, variações, tons, cores, ápices, barrigas, cumes, gozos, dramas, choros, um épico de forno e fogão, daqueles que honram a condição de partida de Copa do Mundo. Vinte anos depois de perder para a notável Laranja Mecânica holandesa na semifinal de 1974, uma devolução com juros na carona de uma patada mágica e improvável, quase do meio de campo. A partida com sol na moleira no Cotton Bowl, em Dallas (EUA), pôs fim a um violento drama na consciência daquele então moleque de pernas finas, ombros curtos e companhia inseparável da bola de couro e chuteiras já gastas, presentes do paizão flamenguista. O segundo dos dramas, cá entre nós.

O primeiro era o de não ter Zico como ídolo, apesar do desejo paterno. Não vi o Galinho jogar no Mengão, questão etária mesmo, e foi Júnior Capacete, o Leovegildo “vovô garoto”, a minha primeira referência, obra do título nacional de 1992 do rubro-negro carioca. Mas isto é lembrança para outra prosa, talvez em bar. Minha questão complicada em Copas e tema primeiro desse troço aqui era a Itália. O campeonato anterior, o de 1990, na terra da bota, é o primeiro de que me recordo. O Brasil caiu cedo, nas Oitavas, gol do argentino Caniggia em duelo esquecível com nossos hermanos. Dançou a Canarinho, mas eu continuei minha aventura pioneira pelas dores e delícias de um Mundial de futebol. Segui o baile, antigo televisor Philco de válvula e imagem levemente esverdeada por companhia, reforçando as fileiras da dona daquela festa, e aí reside o imbróglio: virei fã incondicional do atacante Totó Schillaci, que terminaria artilheiro, e da Azzurra – a despeito do futebol pragmático da geração capitaneada por Bergomi.

A perda do título em casa – a Itália acabou derrotada nos penais também pela Argentina (sempre ela!) e seu guarda-metas Goycochea (a campeã seria a Alemanha) – inaugurou minhas dores futebolísticas. Ostentava enormes… Sete anos! Nápoles ficou muda após aquela partida semifinal, rendendo-se à alteza de Maradona. E eu congelei choroso por incontáveis minutos, sem acreditar no ocaso do escrete de Azeglio Vicini diante de sua gente. No meu aniversário, quatro meses depois da competição, pedi de presente a camisa da Itália, não a do Brasil. A família torceu o nariz, eu dei de ombros, mas logo a paixonite pesou na minha cabeça. Foram necessários quatro anos e uma nova Copa para as coisas se ajeitarem. O gol de Branco em 94 representou, literalmente, o tiro derradeiro no romance tricolore. Mas como o destino – sofisticadamente sacana –, sempre apronta das suas, a final aconteceu justamente contra a Itália. A resolução da história é mais conhecida que roteiro do Titanic: o então melhor jogador do planeta, Baggio (boicotado por Vicini de todas as formas no Mundial ocorrido em domínios italianos), isolou o último pênalti e nós desentalamos o grito de campeão abafado por 24 anos: “é teeeetraaaaaaa!”

Fabato com o capitão italiano de 1990, no jogo da Azurra em Manaus na Copa de 2014

A vida continuou para mim (e muitos!) regida por ponteiros alucinados, segundos, minutos, horas, dias, anos e, sobretudo, Copas – medida de tempo de quatro translações, mas, acima de tudo, a contagem sinestésica e, quiçá, primordial de tudo, combustível da ilusão para seguirmos adiante. Ganhamos de novo em 2002 e perdemos várias vezes, estas na carona de meias ajeitadas em momento errado e das sete chineladas mais doídas em bumbum esculpido a samba: a derrota em casa para a Alemanha é ferida que não fecha, tal qual o Maracanazo de 50.

Fato é que muito além de mera competição, a Copa exacerba sentimentos e exalta um dos nossos maiores produtos culturais e de exportação, talento cunhado em várzea, e de guri, do qual temos obrigação moral de nos orgulhar. Ora, não há equívoco maior do que chutar a canela do mais popular esporte ao cobrar melhorias para o país. Um povo feliz, alimentado, educado e saudável, claro, tem de ser plataforma constante de nação, esta que não pode cerrar seus olhos para sua cultura oligarca e gritantes problemas seculares. Mas jamais ousemos negar a Copa e sua capacidade única de nos vestir de alma.

Não, o futebol não é apenas ópio do povo. É bonito, é nosso, como a Amazônia, os Bois de Parintins, as Cataratas, a Mangueira e a Mocidade Independente, o cair do Sol no Guaíba, o Cristo, a Paulista, as cidades históricas de Minas, a feijoada, o frevo, Olinda, o mix de sabores, olores e frescores que fazem desse torrão um Gigante, a despeito de nossas questões existenciais por demais adolescentes. Perfeição sem arestas que une moleques de oito a oitenta, a bola é, sim, um símbolo pátrio. Que o Brasil coloque sempre sua gente na cara do gol, mas jamais se envergonhe das canetas inquietas e senhoras do bom futebol – elevado, e com justiça!, ao patamar de arte. Com a identidade daqueles meninos apaixonados diante dos televisores, qual este aqui em outrora, não se brinca.

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A final que não jogamos

Está chegando a Copa e nós pedimos para nossos autores contarem histórias do torneio. Abaixo, um texto de Aldir Blanc sobre a final de 2006, aquela entre França e Itália.

 

 

Z de …

Quando Bum-Bum Garoto fantasiou a dieta de greve e manchou para sempre a palavra fome, sua digna esposa, Rosinha Gigoga, espumou sobre “a ira de meu Deus” e ainda lançou um raio que a parta em nossa língua: “…enquanto meu marido se definha”. Recebi uma carta indignada de minha prima de Honório Gurgel, Aparecida Josefa, a Cidefinha. Um trecho “Sou pobre, mas honesta e não me conformo. Não mereço ter meu apelido em boca de cobra”.  Registro o fato porque Ceceu Rico aprontou uma surpresa na final da Copa. Trouxe a Cidefinha pra ver a pelada entre França e Itália, com o amásio (lá dela), o paramilitar Zilmério, vulgo Zinho, feito aquele jogador-enceradeira do passado. Eu entornara de com força, uma noite antes, no aniversário de Fausto Wolff , o Lobo das Esquinas, e bebia com parcimônia, durante a peleja, latas de Itaipava, o licor de melão do Serginho, a cachaça presenteada pelo Ilmar Carvalho, batidas caseiras da Mari… Quando Zinedine Zidane deu a antológica marrada na vaca italiana, minha prima emitiu uns ruídos gorgolejantes, revirou os olhos e, após vários e prolongados tremeliques, tombou ao chão, desmaiada. Ceceu, que teve no passado algum contato com urgências, despejou-lhe uma talagada de batida gogó abaixo. Ela melhorou. Visivelmente constrangido, Zilmério resmungava:

– Que coisa. Parecia a tal convulsão do Fenômeno em 98.

Ceceu, Mari e eu trocamos olhares cúmplices. Não restava a menor dúvida: prima Cidefinha teve um múltiplo orgasmo daqueles!

Dizem que, na mesma noite, desconfiado, Zilmério, em homenagem à Azurra, bancou o Grosso:

– Ataque, né? Eu sei de que qui tu tá precisando…

O ato sexual, vigorosíssimo, foi ouvido em Del Castilho. Cidefinha, em êxtase, gemia:

– Ai, Zi… Isso, Zi…

Quando Zilmério, esbagaçado, pegou no sono, minha prima ainda suspirava:

– Valeu, Zi… dane!

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Copa 2018

Está chegando a Copa e nós vamos contar algumas histórias do torneio. Abaixo, um texto de Luiz Antonio Simas sobre o Mundial de 1982.

 

O SORVETE QUE EU NÃO TOMEI

Ganhar uma copa do mundo é menos prova de competência que confirmação do destino — e o nosso destino, em 1982, era levantar a taça, confirmando a máxima de que a “nêga é minha, ninguém tasca, eu vi primeiro”. Era, além disso, a chance de dizer aos coroas que tinham visto o escrete papar a Jules Rimet em 1970: eu também vi o Brasil campeão do mundo.

Imaginei o gol como nosso destino manifesto e tive um misto de pena e desprezo pelo resto do planeta. A humanidade, sem a amarelinha, era um aglomerado de gente vivendo longe da zona do agrião. E não tínhamos apenas Zico, Falcão, Sócrates e o Júnior cantando “Voa, Canarinho”. Exu, Tupã e Nossa Senhora Aparecida jogavam com a gente, conforme minha avó me explicara.

Até que veio a Itália e Paolo Rossi. Jogo fácil. Mera formalidade temperada de arte e redes estufadas. Quem disse? Eles foram fazendo gols, nós fomos empatando. O primeiro queijo é dos ratos, a primeira esmola é dos pobres e o futebol é que nem o bento que bento é o frade: o seu mestre mandou o Brasil ser campeão. Não obstante, levamos um bolo.

Perdemos.

— Vou encher a cara, disse meu avô.

Eu, fã do velho, também. Peguei as merrecas da mesada, guardadas com afinco para uma tarde de amores urgentes em certa mansão da Rua Alice, que nunca frequentei, e entrei na lanchonete pisando forte, feito pistoleiro num saloon do Velho Oeste. Caixão não tem gaveta, eu vou é torrar o dinheiro todo, já que o mundo não é mais o mundo:

— Quero um sundae grande de flocos com muita castanha.

A garçonete, aos prantos, não falou nada. Preparou o sundae e foi chorar mais um pouco a eliminação. Peguei a colher e fui dar a primeira mordida. Não consegui. Não, eu não sentia tristeza. Eu não sentia coisa nenhuma. Tudo era desencantamento — e se não faz sentido, vou sentir o quê? Fiquei ali bem umas duas horas. O sorvete derreteu.

Imaginei o estádio escuro e deserto. Um estádio vazio, com os refletores apagados, é desde então a imagem mais triste e abandonada que me ocorre para definir a não vida. Ausência de tudo, inclusive da morte. A amiga psicóloga da tia-avó disse:

— Esse menino está deprimido.

A bola, se falasse, diria:

— Esse menino não está.

Será isso a ausência da alma? Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Sou mais chegado às alegrias. O diabo é que, vez por outra, eu dou de sonhar, como ontem, com o sorvete derretendo.

*****

Este texto faz parte de “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea”, livros que o Simas lançou com a gente em 2017.

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Sensação térmica

Esta crônica integra o livro “O Rio do Moa”, de Moacyr Luz.

Nessa minha vida de bússola descompassada, morei, criança em Bangu. Não havia sensação térmica. Era imersão tórrida.

Quase esquizofrênico, zanzei também por Copacabana, no tempo em que a Avenida Atlântica ainda seguia em mão dupla, lentos carros do Leme ao Posto 6, rés da TV Rio e seus primeiros estúdios. Os turistas usavam um bronzeador vermelho aditivado, um urucum-bull no formato de travesseiro.

Na volta ao hotel, metade da pele assada e tatuada para sempre no quarador das esteiras de palhinha, o que sobrava, ardia mais que pimenta malagueta, daquelas do Pará. O sujeito fritava a olhos nus, não era sensação. Alguns sentavam ao redor das barraquinhas de refrigerantes implorando por uma barra de gelo na cabeça. Os artistas de plantão frigiam ovos no asfalto pra lá de selvagem. Pedido feito: gema dura, por favor!

Bangu registrava a máxima.

Das ruas desenhadas com pó de pedra, o calor produzia um delírio de fluidos em chamas.

Não era sensação apenas, qualquer um derretia ao meio-dia.

O ventilador, tonto de tanto girar, pipocava no piso da sala. Mais barulho que eficiência, suas palhetas lembravam hélices de um antigo Electra da ponte aérea.

Recentemente criaram e distribuíram nas ruas os termômetros com anúncios publicitários. Cá pra nós, aquelas torres com números digitais, apresentando graus centígrados dignos de recordes enquanto as autoridades climáticas, desmentindo a quentura, amenizam com leques o teu suor, agride.

Parênteses.

Outra categoria que usualmente contraria os dados de um verão abrasador é a de taxista.

Você precisa implorar, desidratado, pra ligar o ar condicionado e ainda escuta um grunhido enquanto os vidros são fechados.

Voltando à vaca quente, a novidade é a sensação térmica.

Com ares de fim de mundo, o sujeito, quase um beduíno do Saara, se achando rejeitado no purgatório, anota a última frase do apresentador com um dedo no mapa virtual: “Na verdade, é apenas uma sensação térmica!”.

Recordo um vizinho que, pego pela Lei Seca com um litro de uísque na cabeça, hálito de barril de pólvora, se desculpa ao agente da operação: “Meu camarada, parece que eu bebi, né? Mas é só a sensação. Tô bonzinho!”.

Mais um caso pro Santo, o protetor.

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