Está chegando a Copa e nós vamos contar algumas histórias do torneio. Abaixo, um texto de Luiz Antonio Simas sobre o Mundial de 1982.
O SORVETE QUE EU NÃO TOMEI
Ganhar uma copa do mundo é menos prova de competência que confirmação do destino — e o nosso destino, em 1982, era levantar a taça, confirmando a máxima de que a “nêga é minha, ninguém tasca, eu vi primeiro”. Era, além disso, a chance de dizer aos coroas que tinham visto o escrete papar a Jules Rimet em 1970: eu também vi o Brasil campeão do mundo.
Imaginei o gol como nosso destino manifesto e tive um misto de pena e desprezo pelo resto do planeta. A humanidade, sem a amarelinha, era um aglomerado de gente vivendo longe da zona do agrião. E não tínhamos apenas Zico, Falcão, Sócrates e o Júnior cantando “Voa, Canarinho”. Exu, Tupã e Nossa Senhora Aparecida jogavam com a gente, conforme minha avó me explicara.
Até que veio a Itália e Paolo Rossi. Jogo fácil. Mera formalidade temperada de arte e redes estufadas. Quem disse? Eles foram fazendo gols, nós fomos empatando. O primeiro queijo é dos ratos, a primeira esmola é dos pobres e o futebol é que nem o bento que bento é o frade: o seu mestre mandou o Brasil ser campeão. Não obstante, levamos um bolo.
Perdemos.
— Vou encher a cara, disse meu avô.
Eu, fã do velho, também. Peguei as merrecas da mesada, guardadas com afinco para uma tarde de amores urgentes em certa mansão da Rua Alice, que nunca frequentei, e entrei na lanchonete pisando forte, feito pistoleiro num saloon do Velho Oeste. Caixão não tem gaveta, eu vou é torrar o dinheiro todo, já que o mundo não é mais o mundo:
— Quero um sundae grande de flocos com muita castanha.
A garçonete, aos prantos, não falou nada. Preparou o sundae e foi chorar mais um pouco a eliminação. Peguei a colher e fui dar a primeira mordida. Não consegui. Não, eu não sentia tristeza. Eu não sentia coisa nenhuma. Tudo era desencantamento — e se não faz sentido, vou sentir o quê? Fiquei ali bem umas duas horas. O sorvete derreteu.
Imaginei o estádio escuro e deserto. Um estádio vazio, com os refletores apagados, é desde então a imagem mais triste e abandonada que me ocorre para definir a não vida. Ausência de tudo, inclusive da morte. A amiga psicóloga da tia-avó disse:
— Esse menino está deprimido.
A bola, se falasse, diria:
— Esse menino não está.
Será isso a ausência da alma? Não sei, não quero saber e tenho raiva de quem sabe. Sou mais chegado às alegrias. O diabo é que, vez por outra, eu dou de sonhar, como ontem, com o sorvete derretendo.
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Este texto faz parte de “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea”, livros que o Simas lançou com a gente em 2017.