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Flamengo

Sururu no Maracanã

O Flamengo joga nesta quarta-feira a final da Copa Sul-Americana com o Independiente, equipe argentina que levou a melhor na primeira partida da disputa. Os dois times repetem a decisão da Supercopa da Libertadores de 1995. Naquela ocasião, o Independiente também venceu o primeiro jogo e a vitória rubro-negra no Maracanã não foi suficiente para virar o placar.

O jogo do Maraca ficou marcado na memória de muitos flamenguistas que lotaram o estádio e seu entorno. Rodrigo Ferrari, livreiro, dono da Livraria Folha Seca e personagem fundamental do Rio de Janeiro, contou sobre aquela noite em crônica para o livro “O meu lugar”, editado pela mórula em 2015. Vale a pena conferir!

 

OMeuLugar_Header


Sururu no Maracanã

Rodrigo Ferrari

 

Saltou na praça da bandeira, pois o trânsito àquela altura estava insuportável. Passou correndo entre os carros parados, as buzinas comendo soltas, um barulho dos diabos, um monte de gente correndo e gritando Mengo, Mengo, Mengo! Uns poucos desavisados que não tinham nada a ver com o jogo passavam por ali sem querer, ficando putos da vida. Esses aprenderam: dia de Flamengo no Maraca, melhor é dar a volta.

Mas ele corria apreensivo, pois ainda não tinha o ingresso e sabia muito bem o que isso significava. Com aquele tanto de gente ali a bilheteria devia estar uma loucura! O radinho rubro-negro na mão esquerda ia apertado, os passos acelerados no compasso do coração, na cabeça apenas a esperança de que todo o esforço não fosse em vão, que o time correspondesse…

Ia sempre ao Maracanã, desde que jogasse o Flamengo. Nos domingos de jogo já acordava diferente, todos os pensamentos giravam em torno da partida, queria ler os jornais, ver os noticiários, estar por dentro… O Mengo era tudo, as esperanças, desilusões, aspirações… Quando comemorava um gol na arquibancada parecia um deus, voando pelos céus com asas de euforia, abraçando desconhecidos irmanados pelo mesmo sentimento de grandiloquência.

Mas agora só pensava na galera em volta da bilheteria. Aquilo lhe tirava o sossego. Devia ter comprado ingresso antes, como sempre, mas dessa vez não deu. Subiu a pé o viaduto Oduvaldo Cozzi, pois adorava aquela visão do cume da ladeira e adorava descer correndo a rua, facilitado pelo engarrafamento homérico. Quando bateu o olho lá de cima correu-lhe um frio na espinha: a bilheteria era uma muvuca só!

O radinho vinha colado ao ouvido, mas não prestava atenção nenhuma no que os comentaristas diziam. Desligou o aparelho e chegou perto dos camelôs que vendem cerveja e camisas em volta dos guichês. A massa era inacreditável! E pensar que o Flamengo era um dos últimos colocados no Campeonato Brasileiro e aquele era um torneio caça-níquel qualquer. Precisava golear o time argentino, então a diretoria diminuiu o preço dos ingressos e convocou a torcida.

Pensava na galera e se emocionava. Todos tinham aceitado o chamado naquela quarta-feira à noite, a Praça da Bandeira estava intransitável, um tumulto federal. Ouvira no rádio a previsão de cem mil pessoas e ficara abismado. Esse clube despertava paixões inenarráveis. Cada crioulo, cada dona de casa, cada playboy daqueles tinha um compromisso de fé com as cores rubro-negras e estavam dispostos a levar aquilo às últimas consequências. O Flamengo era tudo pra eles, e eles eram acima de tudo Flamengo!

E no momento eram acima de tudo massacrados. Enfrentar aquela selva pra comprar ingresso era um absurdo! Ficava pensando nos jornalistas e dirigentes falando dos problemas do Maraca sem saber quais são as reais dificuldades e sem tocar no ponto crucial da questão: o tratamento ao torcedor. O verdadeiro torcedor, aquele que sofre nas mãos dos profissionais que se instalaram em torno do jogo, pessoas sem envolvimento com o assunto e que enriquecem com a sua desmoralização.

— Porra, e ainda por cima só três guichês abertos! Isso é coisa de vascaíno, não pode ser! Manda a mãe dele vir comprar, seus…!!!

Não havia fila. Um bolo de gente parada, muitos ainda decidindo se iam encarar ou não, uma gritaria dos diabos… Foi ganhando caminho, passando por alguns indecisos, até parar quando não dava mais pra seguir. Ali ficou naquela dança que a moçada vai fazendo, um passinho miúdo que parece não estar andando, mas que quando se vê não dá nem pra voltar. Os corpos vão se juntando e chega uma hora que todo mundo fica tentando ultrapassar o outro, sem cerimônia nenhuma.

Olhava pros lados e percebia na fisionomia dos outros o desespero que também devia estar estampado na sua. Faltavam três metros para chegar à boca do guichê, mas parecia que não chegaria nunca.

A todo tempo se ouvia: “não empurra, porra”, “ai, eu tô passando mal” ou “eu quero um ingresso, filho da puta!”. Ele ia quieto, sem dar um pio. Já tinha passado aquilo algumas vezes, mas essa era sem dúvida a mais custosa. Foi aí que percebeu que a única maneira de sair depois de comprar o ingresso era por cima das pessoas. Isso mesmo, por cima! Alguns tentavam voltar normalmente, mas não dava, a massa era compacta, não havia mão e contramão. Numa hora de muito esmagamento não se conteve: “calma, porra, não empurra que tá chegando!”. E mordia o lábio, esperançoso.

Ninguém se mexia, parecia que ficariam ali pelo resto da vida. Cada espaço conquistado era milimetricamente ocupado, senão o vizinho já se chegava, não dando moleza. Também gritava quando algum felizardo tentava voltar na marra: “sobe, sobe!!!”. Um gaiato, poliglota, mandava: “up, up!!!”. O cara ficava meio indeciso e finalmente, com o ingresso na mão e a ajuda dos outros, subia.

É certo que não sem dificuldade. Teve um que não chegou nem a comprar o ingresso, lá pelas tantas gritou pra trás:

— Não ‘tô guentando’, quero sair!

Quase rolou uma gargalhada geral. Um tapa só não voou por falta de espaço. O gordinho tava desesperado, e viu que ia ter de subir. Apoiou os cotovelos em alguns ombros e fez toda a força que podia. Não saiu do lugar, seu corpo estava totalmente comprimido pela massa. Algumas mãos surgiram pra ajudar e ele foi alçado e logo depois transportado por outras mãos para fora da multidão.

A saída daquele gordinho fora sensacional. Pulara pra frente, já estava a quase um braço da bilheteria. Ali na boca todo mundo esticava o dinheiro e gritava ao mesmo tempo.

— Vai logo, filho da puta, que eu tô morrendo aqui!

— Cinco! Cinco!

Enquanto ajudava os outros a subir, preocupava-se em arranjar um jeito simples de fazer o mesmo. Já vira que era a única saída e queria resolver aquilo o mais rápido possível. Antevia o momento delirante da aquisição do ingresso e já pensava nos detalhes com que iria contar essa façanha pros outros. A camisa do Flamengo estava encharcada. Teve uma hora em que o radinho, preso na mão esquerda, foi quase esmagado, chegando a fazer crec. Inacreditavelmente, tava chegando…

Encostou a mão na parede e forçou o corpo pra trás, conseguindo um espaço razoável naquela loucura toda. Na boca do guichê várias mãos choravam um ingresso, enquanto o bilheteiro, impassível, parecia que estava no Municipal. O problema da galera não era nem com ele, e pelo que pôde perceber ele atenderia mais rápido os menos exaltados.

Já arquitetara tudo: havia um buraco em forma de meia-lua pra passar o dinheiro na altura da cintura e um quadrado na altura dos olhos. Ia ficar segurando aquele espaço e quando tivesse comprado colocaria o pé no buraco de baixo e, forçando o corpo contra as pessoas, se impulsionaria pra cima. Todos mostravam o dinheiro pelo quadrado e gritavam, ele ficou mirando o olho do sujeito e segurando o dinheiro pela janelinha de baixo, sem dizer nada, só mostrando a grana e olhando firme. Deu certo, o cara terminou de dar o troco pro outro e foi direto no dele. Só não contava com a indagação do bilheteiro:

— Quem foi que me deu esse dinheiro aqui por baixo?

Quase meteu a mão dentro do guichê e a sorte foi que ninguém gritou junto. Gelou por um segundo só de pensar que outros poderiam requisitar o seu ingresso. Já imaginou, naquele sururu! Segurou o radinho com força, espremeu o ingresso entre os dedos da outra mão e tentou colocar o pé no buraco. Ia subir direto, não ia nem olhar pro lado. Levou um cutucão do cara de trás e não alcançou a altura. Botou foi a canela mesmo, que neguinho já tava querendo sumir com ele pra ocupar o espaço, fez força pra cima e sentiu a galera empurrando. A canela esfolada seria a prova do esforço e um troféu merecido. Colocou o outro pé e deu um pulo, caindo em cima de todo mundo.

Estava feliz, uma felicidade vermelha e preta, um sentimento que ele já tinha experimentado e que considerava privilégio só de rubro-negros. Não concebia um vascaíno ou tricolor poder sentir essa alegria. O futebol só tinha graça pelo Flamengo, e mesmo a Seleção só servia se tivesse um jogador do Flamengo como craque.

Missão cumprida, virou de barriga pra baixo e olhou pra cara dos outros, apavorados, sem saber se deveriam ou não estar ali, com um outro deitado na cabeça deles. Por um momento ficou parado, sem ninguém deslocá-lo, então gritou:

— ‘Vambora’, gente, agora é com vocês!

Todo mundo que podia se mexer levantou os braços e foi espalmando seu corpo sobre as próprias cabeças, ele radiante, sendo carregado até o fim da muvuca pra aterrissar com as mãos no chão e sair comemorando como um doido o feito inesquecível. Era Flamengo, era um herói! Daria tudo pra alguém ter visto! Olhava pros lados sem saber direito pra onde ir. A canela sangrando estava ali, graças a deus, para não deixá-lo mentir.

Fizera sua parte, agora era com o time.

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