Carol Couto chegou à mórula em 2015 com um livro precioso nas mãos. Não tivemos dúvida que queríamos muito que ele saísse pela mórula, afinal nada mais relacionado conosco do que um livro sobre carnaval. Mas a edição demorou e apenas agora o livro foi lançado.
Paciente, carnavalesca, pesquisadora cuidadosa e autora do nosso 25º livro, “O samba serpenteia com o Escravos da Mauá”, Carol é nosso ser complexo nº 22 e conta tudo sobre samba, carnaval e cabrochas. “Vem, vem, vem quem gosta de sambar”…
_O que é uma cabrocha? Você é uma delas?
Difícil responder sobre “a” cabrocha, aquela mítica que habita nosso imaginário do samba, cujas qualidades são tantas e tão fugidias que parece de fato não ter existido nenhuma mulher que se encaixe nesse ideal. Se formos nos ater à definição clássica, cabrocha é uma mulata jovem. Mas no samba não é só isso. Acho que foi o olhar de desejo masculino nesse contexto dos sambas do passado que constrói essa cabrocha ideal e que vai aparecer nas letras de música: a que tem a pele mais viçosa e feitiço no olhar, que tem mais ginga nas pernas e rebolado nos quadris, a mais faceira e voluptuosa.
Dessa cabrocha só conhecemos o que dizem sobre ela, pois não possui voz própria. Então, ao invés de tentar enquadrar a realidade feminina nessa máscara morta “cabrocha”, como diz Giovanna Deltry sobre o malandro, vale mais a pena observar o processo da ação: o “cabrochismo”, assim como a malandragem, ao invés do rótulo do malandro. Acho interessante como o Escravos da Mauá, mesmo sem querer, promove esse deslocamento pelo “cabrochismo”, com as mulheres liderando a roda na voz e no cavaquinho e fazendo de suas frequentadoras amantes de samba as “cabrochas da Mauá”: principais homenageadas no samba pela resistência, força e alegria. O corpo da mulher como mero objeto do desejo masculino se desloca. Não que não haja uma vontade genuína entre elas de estar atraente e de dançar bonito, mas me parece ser muito mais de satisfação para consigo mesma, algo que só depois do feminismo poderia se solidificar dessa maneira. A mulher não como coadjuvante, mas protagonista.
Nesse sentido, me considero sim uma cabrocha da Mauá, pois tenho devoção pela batucada ao mesmo tempo em que, como mulher, questiono meu lugar na roda de samba e no mundo.
UM LIVRO
“– E até quando acredita o senhor que podemos continuar nesse ir e vir do caralho? – perguntou.
Florentino Ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites.
– Toda a vida – disse.”
O Amor nos Tempos do Cólera
Gabriel García Márquez
Tradução de Antonio Callado
Editora Record, 1985
_O que é a Zona Portuária para você?
É meu lugar de moradia e de trabalho. Aqui conheci pessoas muito especiais, que farão parte da minha história para sempre. Nunca me senti tão parte de um bairro como me sinto aqui na Saúde. E olha que já vivi em muitos bairros. Não deixa de ser curioso um local que precisava de “revitalização” – faltava vida? – ser, para mim, aquele que melhor me acolheu. Pesquisar samba e carnaval me trouxe amizades lindas, me aproximou de pessoas incríveis, que lutam diariamente por reconhecimento e valorização das histórias dos bairros portuários e sim, pelo reconhecimento de suas próprias histórias e lutas. Aqui se experimenta diariamente o cosmopolitismo provinciano do porto, que reúne fluxos de pessoas estrangeiras com os hábitos antigos de moradores por vezes nem tão antigos assim. É aí que mora a beleza: o camarada do copo, quando menos se espera, é exatamente com quem você pode contar. Para além das fofocas e intrigas – incontornáveis em uma atmosfera provinciana – ainda tem muita coisa bonita e muita superação na base da amizade e do carinho. É a coisa humana exposta ali, em suas delícias e fraquezas. Amo isso aqui.
_Qual o seu samba preferido do Escravos da Mauá? Por quê?
Sacanagem ter que escolher um! Não é porque pesquisei sobre o bloco não, mas acho que são muitas composições bonitas. Mas vou agora do samba que dá nome ao meu livro “Cidadania na Praça Mauá”, do carnaval de 1994. A estrofe que me inspirei é a primeira: “Vem, vem, vem, no nosso bloco / Vem, vem, vem quem gosta de sambar / Hoje vai ter maré cheia / E o samba serpenteia / Pelas ruas da Mauá”. Mas a parte em que me empolgo mesmo é o refrão que é mais aguerrido: “Mas deixa, deixa estar / Que chega a hora da virada, vai virar / Bicho-papão cai do cavalo, cai no mar / E a gente canta pra lembrar”. Escolho esse samba porque me lembra o “primeiramente, fora Temer”, que atualmente não tem saído da boca do povo e que em tempos de olimpíadas e tradução simultânea no Google translate a gente manda no inglês também: first of all, get out afraid (risos). Espero poder escolher outro samba da próxima vez, quem sabe.
_Nós demoramos bastante pra editar o seu livro. Onde você encontrou paciência? Pratica alguma terapia para isso?
Eu sou muito ansiosa, como acredito ser a maioria das pessoas por aí, fora os yogis mais avançados, em total desapego à matéria e ao resultado da ação. Eu tento aprender com eles a meditar, procuro meditar todo dia. Mas é difícil, tem dias que os macaquinhos da cabeça ficam descontrolados e parece que não consigo relaxar de jeito nenhum. Nessa hora vou pro bar mais próximo mesmo, dar uma desacelerada com a cerveja e com uma conversa fiada com alguém querido. A cerveja ajuda a diminuir provisoriamente a ansiedade, por isso é tão bom! Faço terapia também há muitos anos, mas sempre me sinto impelida a trocar de terapeuta quando inevitavelmente chegamos a conclusão que devo pegar leve com a cerveja! Aí volta a terapia a ser no bar. (risos)
Eu sofri muito com esse livro, nossa, se houver carma nesse mundo mesmo purifiquei muita coisa minha com vocês! Acendi foi é vela pros meus santos no meu altar de casa, mas depois que estava tudo mais ou menos acertado, aceitei o tempo de produção e tive certeza que o melhor viria. Vocês são muito exigentes, o que só ressalta a primazia com que trabalham. No final, depois de sofrer com a ansiedade, com as ressacas e com as dezenas de fios brancos que surgiram a mais na minha cabeça, acabou sendo tudo ótimo, me senti uma rainha na Mórula com o baita suporte que deram no lançamento.
_Conte-nos sobre um carnaval inesquecível.
Aí também é sacanagem! Um só? Difícil. Mas acho que 2015 juntou muita coisa das quais me orgulho em ter feito e participado. Amei me desafiar a sair de Dercy Gonçalves, levei pra rua e pra vida essa mulher. Ela está ainda comigo e me grita um “foda-se essa porra” bem alto quando estou me deixando abater por algo pequeno ou irrelevante demais. A barricada do carnaval do cordão Prata Preta, relembrando a revolta da vacina foi bem marcante também! Os historiadores do bloco, fissurados com os detalhes, queriam colocar a barricada exatamente no mesmo local e encontraram roupas semelhantes às da época, que vestimos prontamente. Ajudei a empilhar os sacos de batata para proteção dos brincantes “revoltosos” e a posicionar um belo canhão de confetes em nossa barricada. Igual criança, queria porque queria ser a primeira a acionar o canhão em cima da massa que alegremente vinha terminando o cortejo e que nem imaginava o que iria encontrar ali na esquina da praça da Harmonia. Que dia! Foi em 2015 também em que toquei pela primeira vez no meu querido bloco Comuna Que Pariu, cantando o maravilhoso e emocionante samba “Lugar de mulher é onde ela quiser”! As composições do Comuna são de alto nível, além de contar com uma condução exigente do mestre Buchecha! Que venham mais carnavais!