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Mórula

O carnaval vai acontecer. Mas quem vai participar?

Por Bernardo Pilotto*

Ilustração de J. Carlos sobre o Carnaval de 1919 (Revista Careta de 08/03/1919)

Desde o começo da pandemia, uma pergunta tem pautado a cabeça dos amantes da folia: vai ter carnaval em 2021? Num primeiro momento, quando tudo parecia que ia durar poucos meses e que logo voltaríamos ao normal após um período de intenso isolamento social, havia uma expectativa de que tudo se resolveria. Mas, atualmente, diante de um isolamento social que foi apenas parcial e da volta ao trabalho de diversos setores econômicos, o que esperar de 2021?

Primeiramente, gostaria de abordar um tema que tem pairado no ar: o carnaval de 1919. Por ter acontecido logo após a pandemia de gripe espanhola de 1918, ele é sempre evocado para falar de como aquela pandemia foi superada. Desde que o coronavírus chegou com força ao Brasil, Folha de S. Paulo e O Globo fizeram reportagens sobre o tema e esse carnaval é sempre lembrado nas conversas dos foliões nos mais diversos lugares.

Nos relatos que existem, o carnaval de 1919 é sempre lembrado como um carnaval estupendo, marcado pelo primeiro desfile do Cordão da Bola Preta, pelo surgimento do Bloco do Eu Sozinho (não, não é o álbum do Los Hermanos) e dos primeiros blocos só de mulheres no comando.

Um dos relatos mais sistematizados desse carnaval é o livro “Metrópole à Beira-Mar: O Rio Moderno dos Anos 20”, de Ruy Castro. O início do livro é todo dedicado ao carnaval de 1919, que de certa forma já inaugurou a década que estava por vir.

Naquela ocasião, tivemos cerca de 600.000 pessoas (ou 50% da população) infectadas no Rio de Janeiro. Desses, em torno de 15.000 morreram, de setembro a novembro de 1918. A cidade passou por cenas terríveis, como a ausência de madeira para caixões, corpos sendo deixados pelas famílias como se deixa o lixo na rua e a falta de espaço em cemitérios.

O carnaval de 1919 veio então em clima de revanche e desforra. Mas ele não deve ser romantizado, visto que muitos foram participar da festa nas ruas achando que essa seria a última de suas vidas.

Voltando aos dias atuais…

É preciso reconhecer que o carnaval de 2021 já foi comprometido. Isso porque o carnaval, tanto de rua quanto da Sapucaí, é um algo que não existe só naqueles 4 dias que antecedem a quaresma.

No caso das escolas de samba, os meses de março e abril são normalmente usados para férias de alguns profissionais e para desmonte da estrutura do carnaval que passou. Além disso, são feitas as negociações das equipes que farão parte do carnaval seguinte, junto com o anúncio de enredos.

Entre essas tarefas, a que segue pendente é a escolha dos enredos. Temos, aqui, uma divisão entre as escolas de samba cariocas. Havia escolas que já tinham divulgado enredo, como V. Isabel e Mocidade; temos as que optaram por divulgar mesmo após o início das quarentenas, como Viradouro, Beija-Flor, Grande Rio, Unidos de Padre Miguel e Império da Tijuca; e ainda as que têm segurado a divulgação, como Império Serrano, Mangueira, São Clemente e Portela. Em alguns casos, a divulgação do enredo teve a ver com datas específicas ou com o tema (são os casos de Grande Rio e Viradouro).

Não há ainda definição formal da LIESA e LIERJ (ligas que organizam o desfile do Grupo Especial e Série A) sobre o que fazer com o carnaval do próximo ano. Em participação no programa Bar Apoteose, Gabriel David, da Beija-Flor, afirmou que os barracões, especialmente do Grupo Especial, não teriam problema em funcionar desde já, pois seriam lugares arejados e onde não há aglomeração de pessoas. Ainda segundo ele, as escolhas de samba-enredo e o sorteio da ordem dos desfiles (eventos que ocorrem normalmente de agosto a outubro) poderiam ser feitos virtualmente através de lives e que o maior impeditivo para o desfile de 2021 acontecer no carnaval seriam os ensaios, que tem que começar em novembro e dependem de aglomeração.

Enquanto aguardamos uma plenária da LIESA sobre o tema, vale a pena fazer considerações sobre a “mensagem otimista” propagada pelo dirigente da Beija-Flor. A primeira delas é que uma parte importante da confecção das escolas não é feita nos barracões e sim na casa de costureiras ou ainda em barracões menores, espalhados pela cidade. Isso também vale para as escolas que não são do Grupo Especial e que tem barracões bastante precários. Além disso, há outros setores que já ensaiam desde já, como a bateria. Outra questão é que esperar até novembro para tomar uma decisão seria no mínimo temerário.

Entendo que as escolas de samba deveriam desde já tomar uma decisão sobre 2021: ao invés do desfile, organizar um “festival de escolas de samba”, com apresentação de bateria, intérpretes e demais segmentos das escolas, ao som de sambas clássicos de cada agremiação. Esse festival seria realizado em algum feriado ou fim de semana de maio ou abril. E os enredos até agora escolhidos? Ficam para 2022.

Além do vírus, temos ainda um obstáculo econômico, visto que nos últimos anos os lugares da Sapucaí têm sido ocupados basicamente por turistas nacionais e estrangeiros. Diante do cenário em que o Brasil cada vez mais está virando um pária internacional, a quem seriam vendidos os ingressos?

Outra situação é a do carnaval de rua. Ainda que com uma estrutura mais fluida que as escolas, muitos blocos tem também atividades durante o ano todo, sobrevivendo financeiramente realizando oficinas (de instrumentos, de pernaltas e outras) e shows.

Com o cancelamento desse tipo de evento, muitos blocos estão se reorganizando e se adaptando ao novo cenário promovendo, por exemplo, aulas virtuais. As dificuldades se ampliam quando pensamos que a Cultura já era um setor que vinha sofrendo com a falta de financiamento público pelo menos desde 2016.

Para o desfile em si, a organização dos blocos requer bem menos tempos que das escolas de samba. O Cordão do Boitatá, por exemplo, um dos blocos com mais estrutura do carnaval carioca, conquistada a partir do autofinanciamento, começa normalmente seus ensaios e sua campanha financeira em janeiro.

Considerando essas questões acima, acredito que haverá carnaval de rua em fevereiro de 2021, seja ele através dos blocos mais organizados e tradicionais ou através de muita gente saindo na rua para extravasar.

Contextos para além da organização dos blocos e escolas

Vale lembrar que estamos diante de um contexto que ainda há uma expansão da COVID-19, eleições municipais, crise no governo estadual diante de um provável impeachment, crise política em nível nacional e uma dificuldade objetiva em realizar isolamento social, devido à aglomeração das favelas e comunidades e ao pouco auxílio financeiro por parte dos governos para as famílias que dependiam de empregos informais e/ou temporários.

Com a reabertura do comércio, dos shoppings e com a volta até do campeonato estadual de futebol, parece que contamos apenas com a sorte para não termos uma tragédia. Como o coronavírus parece não dar bola para isso, é preciso analisar também alguns cenários da expansão da epidemia.

Segundo a pesquisa Ibope/UFPel, cerca de 7% da população da cidade do Rio de Janeiro já teve contato com o vírus e adquiriu imunidade (que se especula que pode durar por 18 meses). Isso aconteceu em 3 meses de expansão do vírus durante um isolamento social de aproximadamente 50% da cidade. Para se chegar num contingente grande de pessoas já imunizadas a ponto de impedir a circulação do vírus, estimado em 70%, seria necessário multiplicar por 10 o que tivemos até agora. Isso nos levaria a um cenário de mais de 50.000 mortes, apenas na capital do estado. Proporcionalmente, é menos que os 2,5% que faleceram em 1918 (e isso provavelmente se deve ao isolamento meia-boca feito de março a junho e a estrutura de saúde pública que ainda resta por aqui).

Se a “sorte” for a “política pública” vencedora, estaremos diante de um cenário de tristeza e desesperança ainda maior que o atual. Neste cenário, certamente haverá um momento de catarse coletiva, provavelmente na data do carnaval. Diante do desmantelamento das políticas de saúde e da capitulação das autoridades públicas ao negacionismo de Bolsonaro e sua trupe, eu arrisco dizer que, infelizmente, haverá carnaval em fevereiro de 2021. Só não dá pra dizer se eu e você estaremos vivos para presenciar e participar desse momento.

* Bernardo é sociólogo e leva a sério a brincadeira do carnaval. Seus textos são encontrados também no @carnavalicia

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E-book gratuito traz reflexões sobre crise e pandemia

Publicação disponibilizada em formato Epub e PDF reúne debates que contribuem para reflexões sobre a pandemia da COVID-19

Demonstrando que a pandemia da COVID-19 tem diferentes impactos sociais e regionais, o livro organizado pelas pesquisadoras Ana Lole e Inez Stampa e pelo pesquisador Rodrigo Lima Rodrigues, evidencia as marcas da violência colonial e de gênero, do genocídio étnico-racial, das sexualidades dissidentes, dos corpos invisibilizados e das vidas “sem importância” que compõem as sociedades contemporâneas.

BAIXE AQUI: Para além da quarentena: reflexões sobre crise e pandemia

Reunindo 27 artigos de 39 autores, demonstra que os impactos epidêmicos, ao longo do tempo, sempre estiveram dependentes das profundas segmentações e relações, historicamente estruturadas, de exploração-dominação de grupos populacionais.

A crise e a pandemia se retroalimentam, já que as condições de vida cada vez mais precarizadas para a imensa maioria da população aumentam as chances de contágio e de agravamento da doença. A pandemia, por sua vez, exige distanciamento e isolamento social como medida indispensável para a prevenção do contágio, impactando negativamente uma economia já combalida.

No Brasil, temos uma segunda dificuldade em relação à realização de qualquer previsão acerca dos impactos sociais e econômicos da pandemia: a agenda reacionária e a irresponsabilidade política do presidente Bolsonaro, que gera crises consecutivas, ameaças golpistas e um desdém e uma inépcia inacreditáveis em relação ao combate ao novo coronavírus, sua difusão descontrolada pelo território nacional e um descaso pelos mortos.

A atitude negacionista em relação à ciência, a pressão de empresários e as ações na contramão do razoável por parte do governo federal estão conduzindo o Brasil a condições trágicas, tanto sanitárias quanto econômicas. Por muitos ângulos distintos, as autoras e os autores deste livro procuram interpretar os movimentos combinados dessas duas crises, com o intuito de contribuir para ações políticas que nos permitam sair da pandemia em condições decentes de civilidade.

Esperamos que os debates reunidos nesta coletânea contribuam para reflexões sobre a grave crise que assola o mundo, em particular sobre a pandemia, mas, também, possam dar pistas para pensarmos sobre os rumos políticos do Brasil. Uma “nova direção intelectual e moral” é necessária.

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20 anos sem João Nogueira, um combatente da cultura popular

Por Bernardo Pilotto*

Há exatos 20 anos, aos 58 anos, falecia João Nogueira, devido a um infarte fulminante. Cantor e compositor, autor de grandes sucessos da música brasileira como “Espelho”, “As forças da natureza”, “Minha missão” e “Poder da criação”, João morreu na madrugada de 5 de junho de 2000.

Nascido no Méier, na Zona Norte do Rio de Janeiro, em 1941, João teve contato logo cedo com a música, a partir de seu pai João Batista Nogueira e de sua irmã, Gisa Nogueira. Aos 15 anos, já compunha músicas para o bloco Labareda, que agitava as ruas do bairro. Sua carreira profissional começou a deslanchar quando Elizeth Cardoso gravou “Corrente de aço” em 1969.

Na década de 1970 encontrou seu principal parceiro, Paulo César Pinheiro. Com ele, compôs alguns de seus maiores sucessos. Nessa década e na seguinte João também consolidou sua carreira como cantor, gravando 15 álbuns entre 1972 e 1988. Entre esses, destacam-se “Espelho”, “Boca do povo” e “Wilson, Geraldo, Noel”.

Seu modo de cantar seguiu a linha de outros mestres do samba, como Ciro Monteiro. Com uma forma própria de frasear as músicas, João era craque em cantar sambas sincopados.

Além da sua contribuição como cantor e compositor, João também foi um combatente a favor da cultura popular e das causas democráticas. Em 1979, fundou o Clube do Samba, um espaço de valorização do gênero, que naquele momento era deixado de lado em troca da música pop/dance. O Clube começou a funcionar em sua casa e depois foi se expandindo. Posteriormente, virou um bloco de carnaval, que até hoje faz seus desfiles.

A partir daí, conectado com as lutas democráticas que sacudiam o país, João lançou uma série de músicas que abordavam estes temas, como “Vovô Sobral”, “Canto do trabalhador” e “Chorando pela natureza”.

Além da sua participação no Labareda e na transformação do Clube do Samba em bloco de carnaval, João também teve intensa relação com as escolas de samba. Em 1972 foi admitido na Ala de Compositores da Portela (para tal, apresentou o samba “Sonho de bamba”), escola onde ficou até 1984, quando fez parte do grupo que saiu da escola para criar a Tradição.

Nos primeiros anos da nova escola, João foi fundamental. Ele é um dos autores dos 5 primeiros sambas-enredo da escola, momento que a agremiação subiu da quarta até a primeira divisão, numa ascensão impressionante. O primeiro samba-enredo, “Xingu”, de 1985, se insere no contexto das lutas democráticas daqueles anos.

Além da sua participação na Portela e na Tradição, João também desfilou em outras escolas, como a Mangueira, quando esta homenageou o amigo Chico Buarque, em 1998.

Na década de 1990 João seguiu gravando álbuns e compondo, ainda que já com alguns problemas mais sérios de saúde e num momento que as gravadoras andavam desprezando o samba – mais do que em outros momentos. São desse período os excelentes “Parceria – João Nogueira e Paulo Cesar Pinheiro” e “Chico Buarque, letra & música”.

Ao falecer, João deixou um grande legado, nos seus álbuns e nas suas ações concretas. Segue vivo, pois é sempre lembrado nas rodas de samba e nos carnavais.

* Bernardo é sociólogo e adora samba. Seus textos são encontrados também no @carnavalicia

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Arte e cultura contra a pandemia e o fascismo

Por Bernado Pillotto*

Indo para a II Guerra Mundial, um soldado brasileiro levou sua cuíca. Nesses tempos de pandemia mundial e de luta contra o avanço de ideias fascistas no Brasil (e no mundo), essa foto tem ainda mais significado.

Não é à toa que essa imagem ilustra a capa do livro “Latin America During Word War II”. Ela transborda esperança em dias melhores. Mesmo indo para uma guerra de proporções mundiais, a importância de levar seu instrumento, pois alguma hora haveria de ser possível tocá-lo, para um momento de respiro dele e de seus colegas.

Uma imagem que fala também sobre a importância do samba para a vida deste soldado. E não é que a atual pandemia tem nos explicitado tanto a importância da arte e cultura para nossas vidas. De certa forma, as apresentações que muitas artistas fazem de suas casas, as festas virtuais e outras iniciativas com este sentido são a nossa cuíca em tempos de guerra.

A foto também traz a tona a participação de sambistas como soldados brasileiros na II Guerra. Esse tema ilustra alguns sambas, como uma trilogia de Wilson Batista (disponível na voz de Chico e Cristina Buarque AQUI).

Os sambas Lá Vem Mangueira, Cabo Laurindo e Comício em Mangueira contam a história de um diretor da Mangueira (o Laurindo) que foi para o front e, na volta ao Brasil, coberto de glória, é saudado pelas demais escolas de samba e realiza um comício no morro. Laurindo é retratado como amigo da verdade e defensor da igualdade e sua chegada é um indício de que no morro vai haver transformação.

Os 3 sambas tem um tom épico e a força da melodia vai subindo conforme a história vai sendo contada. No final da trilogia, é quase automático ficar de pé, emocionado, cantando em voz alta.

Ainda que Laurindo fosse um personagem imaginário de sambas da primeira metade do século XX (uma pesquisa de Rodrigo Alzuguir, que gerou uma peça de teatro com esse nome, encontrou 13 sambas com esse personagem), é possível dizer que esse Laurindo da trilogia de Wilson Batista tenha existido.

Isso porque a foto de nosso soldado com sua cuíca evidencia algo que já apareceu em outras pesquisas e nas notícias da época: muitos dos pracinhas brasileiros eram oriundos das classes populares. Poderiam, portanto, serem moradores de morros do Rio de Janeiro. E, sendo moradores de morros e favelas, porque não seriam de uma escola de samba?

Além disso, é válido lembrar a participação de vários militantes do PCB (Partido Comunista Brasileiro), defensores da igualdade, entre a Força Expedicionária Brasileira. Junto a isso, temos a importância da URSS na derrota do nazi-fascismo e uma já forte presença do PCB no mundo do samba carioca (os relatos indicam a participação de Paulo da Portela e do próprio Wilson Batista em reuniões com forte influência do PCB). Portanto, não seria difícil que um sambista carioca no pós II Guerra fosse militante comunista e organizasse comícios no morro.

Desta forma, dá pra dizer que foram muitos os Cabos Laurindos que estiveram na Europa ajudando na derrota do nazi-fascismo, naquilo que se configurou certamente como uma das maiores vitórias da classe trabalhadora mundial no Século XX.

Esse soldado da foto, que acreditou na arte e na cultura num dos momentos mais difíceis da história mundial, pode ser uma inspiração para o momento que vivemos. É também com arte e cultura que derrotaremos a pandemia e o fascismo atual e que comemoraremos essa vitória.

[ agradeço a Mariana Vantine e Julia Ventura pelo incentivo para o texto saísse e a Rodrigo Alzuguir pelo envio da foto ]

* Bernardo é sociólogo, folião e leva muito a sério o carnaval de rua, chegando até a criar um Guia de sobrevivência no carnaval

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O Brasil nasceu da melancolia de Zâmbi

Zambiapungo – o senhor supremo – se entristeceu um dia, cansado da solidão do poder e das tarefas da criação. Cogitava mesmo, o pai maior, interromper o curso do mundo. Faltava alguma coisa que justificasse aquela grandeza toda. Zâmbi, que sabia de tudo, achava que tinha criado todas as coisas necessárias para a vida. Mas estava triste e recorreu aos inquices, voduns e orixás, seus filhos diletos.

Pediu a Zaratempo que inventasse algo para despertar seu interesse e o impedir de desistir do mundo. Tempo criou as estações do ano com todas as suas mudanças. Zâmbi gostou, mas não sorriu.
Zâmbi chamou Katendê e pediu a mesma coisa. Katendê, o senhor das jinsabas (folhas), falou ao pai sobre o poder medicinal das plantas. O deus supremo se interessou um pouco, mas ainda assim não sorriu.

Matamba foi a próxima a tentar alegrar Zâmbi. A senhora das ventanias mostrou a força dos furacões e o baile fabuloso dos relâmpagos. Zâmbi olhou, aplaudiu admirado, mas continuou triste. E assim vieram todos os deuses do Congo. Vunji trouxe as crianças; Angorô inventou o arco-íris; Gongobira deu a Zâmbi um rio de peixes coloridos; Dandalunda chamou as luas que mudam marés; Mutalambô fez um banquete com as caças trazidas das densas florestas; Roxo-Mucumbi forjou ferramentas e adagas no ferro em brasa; Lembá Dilê conduziu um cortejo branco de pombas, cabras e caramujos.

Zâmbi gostou e agradeceu, mas continuou triste.

Até que Zâmbi perguntou se Zaze, o dono do fogo, sabia de alguma coisa que pudesse afastar aquele banzo de melancolia. Zaze, a quem os iorubás chamam de Xangô, consultou o oráculo e imolou um bode branco em sacrifício. As carnes foram repartidas entre as divindades do Congo. Zaze, em seguida, aqueceu a pele do bode na fogueira. Ainda com o fogo, tornou oco o pedaço de um tronco seco da floresta. Sobre uma das extremidades do tronco oco, Zaze esticou a pele do animal e inventou Ingoma – o tambor.

Zaze começou a percutir o couro com toda a força e destreza. Aluvaiá, aquele que os iorubás conheciam como Exu e os fons como Legbá, gingou ao som do tambor de Zaze e, logo depois, todos os deuses do Congo, ao batuque sincopado do Ingoma, fizeram a primeira festa na manhã do mundo.

Zambiapungo gostou do fuzuê do tambor de Zaze e descansou feliz. Era isso que faltava. Zâmbi sorriu.

Um filho de Zaze, muito tempo depois, foi capturado na floresta e jogado no ventre escuro de um navio. Esse negro do Congo chegou, entre correntes de ferro e centenas de outros homens, ao outro lado da calunga grande – na terra onde Zambiapungo era mais conhecido como Tupã.

O filho de Zaze, mesmo entre a dureza das correntes e o cheiro da morte do seu povo, conseguiu levar para o país de Tupã o Ingoma inventado pelo pai.

Ao chegar do outro lado do mar, submetido – e insubmisso – ao horror do cativeiro, o filho de Zaze bateu forte no tambor, convidou para o fuzuê o povo de Tupã e chamou, com a força do ritmo ancestral, os deuses das matas, esquinas e macaias. Eles vieram, atraídos pelo fervor das danças e pelo clamor das festas, e resolveram ficar.

Até mesmo alguns dos que chegaram para dominar a terra foram seduzidos e civilizados pela festa. A generosa festa dos filhos de Zâmbi, nos terreiros grandes do Brasil.

O tambor, filho de Zaze, é o pai do nosso povo.

Luiz Antonio Simas é autor de “Pedrinhas miudinhas”, livro em que este texto foi originalmente publicado.

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Um futebol mais previsível?

A Copa acabou, o Brasil não levou, a França ganhou e o jornalista Augusto Martins fala da sua rendição ao árbitro de vídeo, o tal VAR, que embora considere um atentado à narratividade do jogo, parece ser um caminho sem volta para o que o futebol tem se tornado.

O árbitro argentino Nestor Pitana durante a final da Copa de 2018

Rendição

Esta final da Copa do Mundo marcou o momento em que eu me rendi ao árbitro de vídeo, o chamado VAR. Mais do que isso, acho que começo a me conformar que o futebol não é mais o que era há décadas atrás, e, infelizmente, não vai voltar a ser. E o VAR é mais resultado disso do que causa.

Me explicarei de forma breve, para evitar tornar o meu lamento enfadonho. No ótimo livro “Veneno Remédio: O futebol e o Brasil” (2008), José Miguel Wisnik diz já no capítulo introdutório que o futebol “abre-se, mais do que os demais esportes, a uma margem narrativa que admite o épico, o dramático, o trágico, o lírico, o cômico, o paródico”.

Ele continua: “Nele, o tempo da competição é mais distendido, alargado e contínuo do que no futebol americano, no vôlei, no basquete ou no tênis. (…) Não quero dizer que os outros esportes sejam desinteressantes – muito ao contrário. Mas é que neles, em geral, há um foco mais cerrado sobre cada momento contábil, em que se traduz em números ou em ganho de território o embate frontal de performances e competências. (…), temos uma série de alternâncias de ataques e defesas, de confrontos repicados, individuais”.

Para mim, o VAR é um atentado à “narratividade” do futebol descrita por Wisnick. Se em esportes como futebol americano, rúgbi e tênis é possível encaixar o árbitro de vídeo nas inúmeras pausas previstas, no futebol o VAR é por demais intrusivo e quebra a continuidade do jogo. Como se isso não fosse suficiente, esta Copa mostrou que, com ou sem VAR, as decisões permanecerão subjetivas, passíveis de interpretação e, portanto, polêmicas. Bem… Isso não importa mais. Como disse, eu me rendi. Se nas primeiras rodadas da Copa eu poderia escrever um tratado contra o VAR, isso não vem mais ao caso agora.

No intervalo da final da Copa deste domingo, me veio o lampejo. No primeiro tempo, eu vi a França sem jogar nada marcar um gol de bola parada. Depois, a Croácia, que jogava melhor, mas não criava chances, empatou também na bola parada. No fim da primeira etapa, o juizão se atrapalhou com o VAR e deu um pênalti mandrake para a França, após um escanteio. Pois, bem. Num futebol em que os lances de bola parada são cada vez mais importantes (leio nos sites que esta foi a Copa com mais gols de bola parada) e em que trancar os espaços do campo tem mais valor do que a posse de bola, o árbitro de vídeo não é tão anômalo assim. No futebol do jogo picado, o ritual do juiz correndo para o monitor ao lado do campo enquanto o estádio todo espera o que está por vir não é tão patético assim.

Lembro do livro de Wisnik e não posso evitar de pensar se o futebol não está ficando mais fásico. Não, obviamente, como o vôlei ou o basquete, não que tenha perdido por completo a tal narratividade, mas se não está ficando mais previsível, se não está assim se transformando para pior. Pode ser o nostalgismo típico da velhice me atacando já na meia-idade, mas na próxima Copa eu acho que vou de Netflix.

 

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Tá chegando a hora

Finalmente vai começar a Copa e para esquentar um texto de Marcelo Moutinho sobre essa ansiedade que só o Mundial de Futebol desperta. Quais serão os lances inesquecíveis? Os jogos mais feios? E os mais bonitos? E o gol de placa, será de quem? A maior goleada? O maior vexame?

Bola pro mato que o jogo é de campeonato!

 

O gol mais bonito de 2014: o peixinho do holandês Van Persie

 

 

Olaria x Madureira em Moscou

Temos um time, como as eliminatórias e os recentes amistosos comprovaram. E, ao contrário de anos anteriores, não há nenhuma grande treta futebolística no ar. Nenhum muxoxo porque fulano ficou de fora ou sicrano foi vítima de injustiça histórica que culminará na humilhante derrota. A rigor, as antiquadas recomendações russas sobre a “demonstração de afeto homossexual” e os hilários vídeos de divulgação do torneio dão mais assunto do que a convocação dos jogadores. Resta, portanto, enfrentar mais algumas horas de pasmaceira — entrecortados pela chatíssima polêmica sobre ou torcer ou não pela Seleção — enquanto o leite ferve na panela.

Pois não vejo a hora de começar a peleja propriamente dita. Bola pro mato que o jogo é de campeonato. De Copa do Mundo. E então engrossar o coro da minoria — 130 milhões contra o resto do mundo, reforçado pela turma disposta a remar na contramão — na expectativa pelo hexacampeonato, com a disposição de trocar o melhor livro por um memorável Arábia Saudita x Egito. Sim, porque há vida além da Seleção Brasileira, e nem sempre o embate mais interessante do campeonato acontece entre gigantes como Argentina e França.

Quem já assistiu a um Madureira x Olaria na Rua Bariri bem sabe quão tocante é ver aquele trombador, com quem a bola não quis papo durante toda a partida, deslizar de carrinho pelo barro, esticar a rede adversária e correr, com o joelho esfolado e sem pensar em departamento médico, em direção à torcida que comemora como se fosse o título do Brasileirão. Nesses jogos, à margem da exuberância óbvia que exalam os gigantes das quatro linhas, a beleza nasce justamente do precário — do uniforme mal desenhado, da bizarra furada do zagueiro, da magreza subnutrida do lateral, do esforço comovente do camisa dez em honrar o número ao qual legou o rei Pelé uma mística inequívoca.

Guardadas as devidas e muitas proporções, na Copa que se aproxima também teremos alguns anticlássicos por (falta de) excelência. Que venham, então, Espanha x Portugal, Inglaterra x Bélgica, Alemanha x México, os confrontos de monta. Mas também Panamá x Tunísia, Irã x Marrocos, Senegal x Japão. Que venham as estrelas Messi, Cristiano Ronaldo e Neymar. E, a seu lado, os famosos ‘quem’. Craques absolutos e pernas-de-pau de pelada no Aterro, lado a lado.

Com a compreensão previamente rogada às pendências do cotidiano, eles povoarão por um mês as telas das TVs e de nossa imaginação. Nem que seja para lembrar que perder ou ganhar é do jogo. E que o futebol, assim como a vida, é feito de gols de placa e furadas vexatórias.

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Sensação térmica

Esta crônica integra o livro “O Rio do Moa”, de Moacyr Luz.

Nessa minha vida de bússola descompassada, morei, criança em Bangu. Não havia sensação térmica. Era imersão tórrida.

Quase esquizofrênico, zanzei também por Copacabana, no tempo em que a Avenida Atlântica ainda seguia em mão dupla, lentos carros do Leme ao Posto 6, rés da TV Rio e seus primeiros estúdios. Os turistas usavam um bronzeador vermelho aditivado, um urucum-bull no formato de travesseiro.

Na volta ao hotel, metade da pele assada e tatuada para sempre no quarador das esteiras de palhinha, o que sobrava, ardia mais que pimenta malagueta, daquelas do Pará. O sujeito fritava a olhos nus, não era sensação. Alguns sentavam ao redor das barraquinhas de refrigerantes implorando por uma barra de gelo na cabeça. Os artistas de plantão frigiam ovos no asfalto pra lá de selvagem. Pedido feito: gema dura, por favor!

Bangu registrava a máxima.

Das ruas desenhadas com pó de pedra, o calor produzia um delírio de fluidos em chamas.

Não era sensação apenas, qualquer um derretia ao meio-dia.

O ventilador, tonto de tanto girar, pipocava no piso da sala. Mais barulho que eficiência, suas palhetas lembravam hélices de um antigo Electra da ponte aérea.

Recentemente criaram e distribuíram nas ruas os termômetros com anúncios publicitários. Cá pra nós, aquelas torres com números digitais, apresentando graus centígrados dignos de recordes enquanto as autoridades climáticas, desmentindo a quentura, amenizam com leques o teu suor, agride.

Parênteses.

Outra categoria que usualmente contraria os dados de um verão abrasador é a de taxista.

Você precisa implorar, desidratado, pra ligar o ar condicionado e ainda escuta um grunhido enquanto os vidros são fechados.

Voltando à vaca quente, a novidade é a sensação térmica.

Com ares de fim de mundo, o sujeito, quase um beduíno do Saara, se achando rejeitado no purgatório, anota a última frase do apresentador com um dedo no mapa virtual: “Na verdade, é apenas uma sensação térmica!”.

Recordo um vizinho que, pego pela Lei Seca com um litro de uísque na cabeça, hálito de barril de pólvora, se desculpa ao agente da operação: “Meu camarada, parece que eu bebi, né? Mas é só a sensação. Tô bonzinho!”.

Mais um caso pro Santo, o protetor.

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PTSC#27

foto Luis Henrique 2014É possível que o leitor reconheça Mauro Iasi como professor da UFRJ. Ou mesmo como dirigente partidário do PCB, partido pelo qual foi candidato a presidente em 2014. Ele é também um dos autores desta casa. Mauro organizou “Ecos do golpe – a persistência da ditadura 50 anos depois” e publicou conosco na antologia “Cultura, democracia e socialismo”. Pois Iasi é mais que isso, de fato um ser complexo. Na entrevista a seguir, apresentamos o poeta, autor de “Outros tempos”, nosso novo lançamento.

Nestas perguntas triviais Mauro fala de poesia, do próprio livro e, como não podia deixar de ser, analisa a conjuntura. Afinal, o que espera o poeta das eleições e da Copa do Mundo?

_Você é dirigente partidário, professor, poeta e foi candidato a presidente. Quem é Mauro Iasi?
No momento pai do Camilo (do Gi e da Má) e em breve avó do Tom. Sou um educador popular, emprestado para a Universidade, e, quando crescer, quero ser poeta e comunista.

_Por que você diz que “Outros tempos” reúne poemas “noturnos”?
Meus poemas sempre foram militantes, comprometidos com a luta e, por isso mesmo, com a paixão e a vida. Acontece que, às vezes, a vida fica difícil, como agora. São tempos de retrocesso, de abismos, de derrota e a poesia reflete tudo isso. Mas, é de noite que a gente sonha, não é?

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UM LIVRO

“Versos não se escrevem para a leitura de olhos mudos. Versos cantam-se, urram-se, choram-se (…) Repugna-me dar a chave de meu livro. Só quem for como eu tem essa chave”.

Mário de Andrade. Poesias completas.
Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio.
Edusp, 1987

_Toda poesia é política?
Toda poesia viva é política, toma partido, escolhe seu lado, sofre, cicatriza. Poesia exige sensibilidade diante da vida e aquele que consegue ficar imune diante da injustiça do mundo, deste pais oligarca e escravista, tem alguma coisa de errado. O caráter político da poesia não se encontra só naquilo que ela diz, em seu conteúdo, a poesia é também forma, ritmo, imagem e sensação que se sugere àquele que lê. Ela provoca e incita o mundo a mudar para continuar vivo.

_Você tem um poeta preferido?
Fica difícil dizer um só. Fui criado lendo Neruda, Guillén, Vallejo, descobri como que tomado por um furacão o enorme Maiakovski e Brecht. Mas quem primeiro me mostrou a força que a poesia tem e me fez levantar do chão da vida, foi Drummond. Agora, quem é brasileiro e da minha geração logo aprendeu que poesia vem junto com a música e daí meus poetas são Aldir Blanc, Victor Martins, Cacaso, Fernando Brant, Chico Buarque entre tantos outros.

_Você arrisca previsões para 2018? O Brasil ganha a Copa? Quem será eleito presidente?
Difícil. Vai ter muita luta e muita coisa vai mudar. No momento estou torcendo contra, contra a Reforma da Previdência e o saco de maldades do usurpador. Desde Johan Cruyff eu torço para a Holanda, ela está fora da copa este ano, mas não importa, torço mesmo assim. Não seria interessante se quem estivesse disputando por fora das regras da FIFA acabasse ganhando? Viva o Poder Popular, quem sabe?

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Promoção de carnaval

Entre os dias 1º e 15 de fevereiro o site da Mórula está com um código promocional de 30% de desconto para os livros relacionados ao carnaval, “Pra tudo começar na quinta-feira”, de Luiz Antonio Simas e Fábio Fabato, e “O samba serpenteia com o Escravos da Mauá”, de Carol Couto.

Para participar é só inserir o código MORULANAFOLIA no carrinho de compras que o desconto aparece. Vale lembrar ainda que o frete é grátis pra todo o Brasil. Clique no livro e aproveite a promoção.

o sambapra tudo

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Cosme e Damião

Dia 27 é dia de São Cosme e Damião e nós celebramos com um texto de Luiz Antonio Simas, em homenagem aos santinhos. O texto foi publicado no livro “Pedrinhas Miudinhas: ensaios sobre ruas, aldeias e terreiros”.

 

São Cosme e São Damião

Sou devoto amoroso do Brasil e dos seus encantamentos. Nesse ponto, e dou o braço a torcer, quem está certo é o velho compositor baiano: “quem é ateu e viu milagres como eu”… E nossos milagres, camará, são muitos, temperados por tambores e procissões; pela Virgem no andor, o caboclo na macaia e o preto velho no gongá. Somos, os brasileiros, filhos do mais improvável dos casamentos, entre o meu compadre Exu e a Senhora Aparecida – a prova maior de que o amor funciona. E Tupã, que se vestiu com o cocar mais bonito para a ocasião, celebrou a cerimônia entre a cachaça e a água benta.

Uma das nossas mãos está calejada pelo contato com a corda santa do Círio de Nazaré – a outra tem os calos gerados pelo couro do atabaque que evoca as entidades. As mãos do Brasil e do seu povo. Nossos ancestrais passeiam pela vastidão da praia sagrada dos índios de Morená, retornam à Aruanda nas noites de lua cheia, silenciam no Orum misterioso das almas e florescem encantados nas folhas da Jurema. Os guerreiros de nossas tropas trazem a bandeira do Humaitá, o escudo de Ogum e o estandarte da pomba branca do Divino Espírito Santo – a mesma pomba que pousou na ponta do opaxorô de Obatalá. São essas as nossas divisas de guerra e paz; exércitos do Brasil.

E digo isso porque chegou o dia de Cosme e Damião. Dia brasileiro dos santos estrangeiros e orixás africanos. Dia de igreja aberta, missa campal, terreiro batendo, criança buscando doce, amigos bebendo saudades e aconchegos. Dia de comer caruru na rua. A tradição brasileira de Cosme e Damião é a mais festiva do mundo. O bom, nessas horas que antecedem as folganças dos santos gêmeos, é vadiar no clima da folia, tomando pinga e ouvindo umas cantigas bonitas sobre os protetores dos meninos. É hora de bater samba de roda pra Dois-Dois, na palma da mão e no ponteio da tirana.

Aqui em casa toquei a alvorada lembrando as cantigas mais bonitas que conheço em homenagem aos gêmeos. É de comover pedra! Quando ouço as louvações pros santinhos, tenho forte desconfiança de que ainda morro um dia de tanta belezura do Brasil – um amor que não se explica, feito cachaça da boa, jabuticaba, sorvete de cupuaçu, beira de rio, gol do meu time, cerveja gelada, mulher amada, amigos do peito e caruru de Cosme. E que no dia de cantar pra subir, um samba de roda desses me carregue ao encontro dos meus pela Noite Grande.

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Mórula na FLIP 2017

Confira nossa agenda na Festa Literária Internacional de Paraty:

_Quinta, 27/07, às 15h: Alberto Mussa, Felipe Botelho Corrêa e Luiz Antonio Simas, convidados da Flip 2017, vão reviver os tempos em que Lima Barreto se sentava no Café Papagaio. A mediação da conversa é de Mariana Filgueiras e o papo acontece no Café Paraty, rua do Comércio, 253.

_Sexta, 28/07, às 15h: dia de ouvir Luiz Antonio Simas e Beatriz Resende revisitando os lugares do Rio de Janeiro por onde Lima Barreto passou, através de personagens de seus romances e contos. “Subúrbios”, no Auditório da Matriz.

_Sábado, 29/07, às 18h: Marcelo Moutinho, Henrique Rodrigues e Fernando Molica batem um papo e lançam “Conversas de Botequim” no Encontros Malê em Paraty. Na Rua do Fogo, 04 – Centro Histórico.

Também no sábado, o livreiro Rodrigo Ferrari fará da Rua da Matriz uma filial da Rua do Ouvidor. A partir das 18h, a versão itinerante da Folha Seca oferecerá ao público uma seleção cuidadosa de obras relacionadas à cultura carioca. Os autores que sempre estão pela Folha Seca, fazendo dela a livraria mais charmosa do Rio de Janeiro, também estarão por lá. E às 21h o samba come solto!

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O Papão da Curuzu

* texto de Luiz Antonio Simas, que integra o livro “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea“.


 

O "Papão da Curuzu", Paysandu
O “Papão da Curuzu”, Paysandu

Somos, os brasileiros, pentacampeões mundiais de futebol. Perguntaram-me, certa feita, qual foi a maior das vitórias do futebol tupiniquim. A final contra a Suécia, em 1958? O saco que metemos na Itália, em 1970?

Matutei sobre os feitos do escrete, descartei as finais de 1962, 1994 (essa foi menos emocionante que a Missa do Galo daquele ano) e 2002, cogitei citar o baile que demos na Espanha na fase final da Copa de 1950, mas, na hora de responder, falei de forma automática, feito caboclo de umbanda:

— A maior vitória da história do futebol brasileiro não foi obtida pela seleção. Foi o vareio que o Paysandu de Belém deu no Peñarol do Uruguai em 18 de julho de 1965: 3 a 0 pro Papão no Estádio da Curuzu.

É verdade. Foi mesmo um feito digno de figurar nos anais da história. O Peñarol à época era uma máquina. O time titular era praticamente a seleção do Uruguai: Mazurkiewsk, Forlan, Abbadie, Pedro Rocha e Caetano, por exemplo, envergavam a camisa preta e amarela do time platino. Eram, os gringos, bicampeões da Libertadores da América, bicampeões uruguaios e campeões mundiais interclubes.

Pois o Paysandu deu um vareio nos homens. Com o ex-tricolor Castilho fechando o arco e um ataque encapetado — Vila, Milton Dias, Pau Preto e Ércio —, o Papão não tomou conhecimento da rapaziada do churrasco, jogou pra dedéu e liquidou a fatura de forma inapelável (Ércio, Milton Dias e Pau Preto fizeram os gols).

Ouso dizer que, em se tratando de confrontos na América Latina, o que o Paysandu fez com o Peñarol reduz a Batalha Naval do Riachuelo a um evento tão dramático quanto um passeio de elevador em um prédio de cinco andares.

O triunfo do Paysandu virou Belém de cabeça pra baixo. Houve carreata, ponto facultativo, desmaios, infartos, pororoca no Rio Guamá, pato no tucupi e o escambau. O Liberal, o maior jornal do Pará, estampou na manchete: “Triunfo do Papão é a vitória do Brasil”. Estava vingado o maracanazzo de 1950.

Daqui do Rio, basbaque com o triunfo, Nelson Rodrigues — garantindo que assistira ao jogo pelos rumores do vento — não deixava por menos em sua crônica no jornal “O Globo”: “O Paysandu tem camisa. Sendo preciso, sua camisa deixa de ser um trapo qualquer para erguer-se como um estandarte em chama […]. O Peñarol saiu de lá com as orelhas a meio pau. Três a zero! Um banho completo!”.

Uma grande história desse jogaço aconteceu nas arquibancadas. Um dos torcedores presentes ao embate, o fuzileiro naval Francisco Pires Cavalcanti, teve um treco durante a partida. Pires era músico da marinha e compositor, mas não conseguia compor nadica de nada há uns vinte e tantos anos. As musas do poeta estavam de férias.

Entusiasmado com o desempenho do seu Paysandu, o fuzileiro Pires teve uma inspiração súbita, uma espécie de estalo de Vieira. Num estado de transe que só o futebol proporciona, começou ali mesmo, nas arquibancadas, a compor uma marchinha em homenagem ao Papão e ao chocolate paraense nos uruguaios.

Encerrado o jogo, um eufórico Pires cantava que nem doido para não esquecer a melodia que acabara de fazer: “Uma listra branca, outra listra azul, essas são as cores do Papão da Curuzu”. O fuzileiro acabara de compor a ciranda, cirandinha do futebol do Pará.

Além, portanto, da vitória acachapante contra os gringos, aquela tarde de sol em Belém viu nascer um dos hinos mais simpáticos dos clubes de futebol do Brasil. Para muitos, inclusive, a marchinha de Pires é o hino oficial do Papão. Não é, mas é como se fosse.

Vou ser sincero: o hino oficial do Paysandu não me comove. Parece uma ladainha de igreja. Já a marchinha do fuzileiro Pires é boa pra burro. Cita o baile no Peñarol e ainda sacaneia o maior adversário, o Clube do Remo, ao se referir a uma biaba que o Papão deu no rival (um acachapante 7 a 0) no verso “Pintou o sete numa tela azul”. É isso, camaradas. Viva o glorioso Paysandu e viva o fuzileiro Pires, caboclo amazônico encantado nas arquibancadas da Curuzu toda vez que a torcida do Papão entoa sua marchinha arretada.

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Sonhos, derrotas e conquistas da várzea

O jogador Mauro Shampoo
O jogador Mauro Shampoo, um dos homenageados no livro

As 32 crônicas de “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea” são uma forma de resistência encontrada pelo autor, o historiador Luiz Antonio Simas, ao futebol moderno, tratado como negócio e espetáculo. Nos textos, que valorizam os chamados “times pequenos”, as derrotas são tão valorizadas quanto as conquistas, e a várzea é considerada qualquer terreno onde o futebol inventa a vida.

Crítico aos termos “jogador diferenciado”, “peça de reposição”, “assistência”, “arena multiuso” e “espectador”, Simas faz um paralelo entre as culturas do futebol com as do botequins atuais: “O processo de falência do futebol e do botequim como cultura reduz o jogo e a ida ao bar aos patamares de meros eventos; para delírio das caravanas que parecem percorrer os bares com a curiosidade dos antigos imperialistas em incursões civilizadoras e dos espectadores que ficam fazendo selfies em estádios de futebol enquanto a bola rola. Me espanta, ainda, como isso se reflete no vocabulário, que perde as características peculiares do torcedor e do bebum (o correto agora é chamar de “butequeiro”) e se adequa ao padrão aparentemente neutro do jargão empresarial”.

O jornalista Thales Machado, que escreveu a orelha do livro, descreve Simas como “um sujeito encostado no balcão, de chinelo de dedo, camisa do São Cristóvão, para nos dizer e nos lembrar que vale também a história do Leônidas da Selva e não só a do (grande) Leônidas da Silva”.

O que interessa ao historiador a respeito do futebol brasileiro é a capacidade que o povo daqui teve de se apropriar do jogo europeu e lidar com ele não como simulacro, mas como reinvenção. Segundo Simas, “este talvez seja o traço distintivo mais importante de certo modo de ser brasileiro: a capacidade crioula de apropriação de complexos culturais estranhos e o poder de redefini-los como elementos originais”.

 

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Santo Antônio: Ogum, Xangô, Exu e secretário de segurança

No dia de Santo Antônio, resgatamos um texto de Luiz Antonio Simas presente no livro Pedrinhas Miudinhas.


Sei de muita gente que anda preocupada com os eventos previstos para a cidade do Rio de Janeiro nos próximos anos. Há quem diga que a cidade não suportará o crescimento do Carnaval, o furdunço da Copa do Mundo de 2014 e as Olimpíadas de 2016. Minha opinião, nesse sentido, é muito clara: a população da cidade do Rio de Janeiro tem a tradição de enfrentar com galhardia as maiores confusões e transformar em festa (para o bem e para o mal) as situações mais desfavoráveis. Os riscos maiores se encontram, podem apostar, nas ações e negligências do poder público. Recorro à História para exemplificar.

Em 1710, pouco depois da notícia de que o ouro tinha sido encontrado em Minas Gerais, o rei francês Luís XIV resolveu enviar ao Brasil novecentos e tantos piratas, sob comando do capitão de fragata Jean-François Duclerc, para pilhar a cidade do Rio de Janeiro.

Os flibusteiros enviados pelo Rei Sol, temendo a barra estreita e as fortalezas da Baía da Guanabara, desembarcaram em Guaratiba, atravessaram os sertões de Jacarepaguá e as matas da Tijuca e rumaram em direção à cidade sem maiores problemas. Nesse momento entrou em cena o governador do Rio na ocasião, o português Castro Morais – apelidado pela população, que tinha o saudável hábito de não simpatizar com governantes, de ‘O Vaca’. Retifico a frase: Castro Morais, na verdade, saiu de cena.

Ao receber a notícia de que os homens de Duclerc estavam chegando ao Centro da cidade, Castro Morais tomou a mais inusitada decisão administrativa da história carioca em todos os tempos. Teve um ataque de covardia, se trancou no palácio governamental (no prédio onde hoje fica o Centro Cultural Banco do Brasil) e, de lá mesmo, mandou anunciar que estava passando, em ato administrativo, o comando das tropas ao novo chefe da segurança pública da cidade: Santo Antônio.

É isso mesmo. Santo Antônio, o casamenteiro, morto em 1231, foi oficialmente nomeado comandante das forças de segurança do Rio de Janeiro em 1710. Há quem afirme que uma pequena estátua do santo foi oficialmente empossada no cargo, em rápida cerimônia administrativa.

O pepino sobrou, evidentemente, para a população. As notícias deque o governador estava trancado no palácio sob cuidados médicos, tendo ataques nervosos, e de que Santo Antônio era o novo responsável pela defesa da cidade, levaram o povo do Rio a se virar. E nisso, admitamos, o carioca é especialista.

Os franceses – desgastados pela estratégia maluca de atravessar Jacarepaguá e a Tijuca a pé – foram emboscados no largo da Lapa e atacados das janelas com armas de fogo, óleo fervente, pedras, pedaços de pau, hortifrutigranjeiros e toda a sorte de quinquilharias domésticas. Milícias populares se organizaram com impressionante rapidez. O cacete estancou nas vielas do Centro, com especial destaque para combates corpo a corpo envolvendo escravos, índios, mulheres, crianças, bebuns, padres e devotos. Os estudantes do colégio dos jesuítas deram uma banana para as aulas, formaram uma inusitada artilharia de batinas e, desta forma, mandaram bala nos franceses e evitaram a invasão do palácio do governador.

Depois do furdunço todo, o saldo da quizumba era o seguinte: trezentos e tantos franceses mortos, quatrocentos e poucos presos – dentre eles o próprio Duclerc, que acabou misteriosamente assassinado em sua prisão domiciliar – e outros tantos feridos. O governador, saído do estado de letargia, permitiu que a semana seguinte à vitória fosse dedicada aos festejos populares – como se a população precisasse de alguma autorização do Vaca para celebrar a vida.

A ironia é irresistível. Que me desculpem os fãs da política de segurança dos governos. Os fatos históricos indicam, sem a menor margem de dúvidas, que o maior secretário de segurança pública da história do Rio de Janeiro foi mesmo Santo Antônio. Estou com ele e não abro. Revelam, ainda, a enorme capacidade da população do Rio para dar nó em pingo d’água e se organizar na mais absoluta desordem.

O risco maior é mesmo a síndrome de Castro Morais. Vez por outra o espírito do Vaca gruda no cangote dos nossos governantes e o poder público não cumpre a sua parte, não faz o que deve ser feito e ainda corre o risco de se meter onde não devia. De festa a gente entende; administrar o babado é que são elas. A vocação do Rio, salvação e danação da nossa gente, é, afinal de contas, amanhecer cantando.

Quanto a Santo Antônio, resta dizer que este é craque. Sincretizado com Ogum nos candomblés da Bahia, com Xangô, em alguns candomblés do Recife, e até com Exu, em vários terreiros cariocas, mereceu inclusive ser homenageado com uma curimba das mais populares em nossas macumbas, que o vincula ao povo da rua:

Santo Antônio de batalha
Faz de mim batalhador
Corre gira, pombagira,
Tiriri e Marabô.

 

 

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Pré-venda de “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea”

19437413_1532471166824871_5822385459914468664_n Tem pré-venda na área! Comprando o novo livro de Luiz Antonio Simas, “Ode a Mauro Shampoo e outras histórias da várzea“, até às 16h do dia 30/06, você leva para a casa um exemplar autografado e ainda concorre a uma camisa do Paysandu de 1965. Os livros serão enviados a partir do dia 03/07 e o frete é grátis para todo o Brasil.

As 32 crônicas do livro são uma forma de resistência ao futebol moderno, tratado como negócio e espetáculo. Nos textos, que valorizam os chamados “times pequenos”, as derrotas são tão valorizadas quanto as conquistas, e a várzea é considerada qualquer terreno onde o futebol inventa a vida. Saiba mais.

O lançamento da publicação será no dia 01/07 às 14h, na Livraria Folha Seca, na Rua do Ouvidor. Confirme sua presença em nosso evento no Facebook e convide seus amigos.

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Caboclo da Vila

Com a proximidade dos 80 anos da morte de Noel Rosa, a Mórula homenageia o sambista com o lançamento de “Conversas de Botequim“, reunião de 20 contos inspirados nos títulos de suas canções, escritos por 20 autores de diversas partes do Brasil. O texto abaixo, sobre o compositor, é de autoria de Luiz Antônio Simas e integra o livro “Pedrinhas Miudinhas“.


Noel Rosa é um dos inventores do Brasil, gênio da raça. Deveria ser ensinado nas escolas, cantado nas universidades, bebido nos botequins, saudado nas esquinas e reverenciado nos terreiros.

Noel Rosa é Exu e Oxalá ao mesmo tempo – homem da rua, dono do corpo, malandro maneiro, azougue de céu e terra, civilizador afoito e velho sábio. Feito Obatalá bebeu o vinho de palma, dormiu na sombra da palmeira, largou a medicina como se larga a tarefa de Olodumare, zombou da sorte, não criou o mundo mas moldou no verso – ritmado em samba – o homem.

Noel Rosa é tapa na cara do preconceito e prova evidente de que o maior elemento civilizador do Brasil é o samba. Não pensou em remover favela – subiu o morro, aprendeu, ensinou, bateu, levou e inventou a vida entre o pandeiro e a viola. Branco azedo entre os pretos, feito camisa do Botafogo.

Noel Rosa é conversa de botequim, futebol no rádio de pilha, conta pendurada, caldo verde pra curar ressaca, conversa fiada, sacanagem no portão, punheta de garoto, pêra uva maçã salada mista, selo carniça nova, pipa no céu, bola ou búlica, vida pela sete, com tabela na caçapa do meio. Brasil que gosta do Brasil.

Noel Rosa é festa da Penha, novena, quermesse, tambor de mina, sessão de mesa, doce de Cosme, baile nos infernos, flor e navalha, afago e pernada, gol de letra e gol de mão, pomba da paz e galo de rinha, Estácio, Tijuca, Vila – o Brasil que sabe, e Morengueira confirma, que em casa de malandro o vagabundo não pede emprego.

Noel Rosa viveu no tempo em que do morro da Mangueira se enxergava a Vila Isabel. Hoje, entre o Buraco Quente e o Boulevard, existe o prédio da Universidade do Estado do Rio de Janeiro pra esculhambar a vista – e não se ensina o poeta, e não se canta o poeta na universidade: Pior pra ela.

Noel Rosa nunca morreu; encantou-se em Vila Isabel aos vinte e seis anos, feito Mestre da Jurema, Zé Pilintra, caboclo de pena, boiadeiro de laço, erê de cachoeira, bugre do mato, malandro da encruza e exu catiço.

Noel Rosa é da família dos encantados que moram nas esquinas, campos de várzea e botecos vagabundos, e baixam quando a noite é grande e a cachaça é farta: Mané Garrincha, Aleijadinho, Bispo do Rosário, João da Baiana, Cartola, Mãe Senhora, Geraldo Assoviador, Villa Lobos, Bimba, Pastinha, Camafeu de Oxóssi e Lima Barreto são da mesma guma de ajuremados – os caboclos nossos, brasileiros.

Noel Rosa é.

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